quinta-feira, 1 de junho de 2023

MUTAÇÃO DE APOTEOSE DO OFICINA ESTREIA NA VIRADA CULTURAL EM SÃO PAULO. MAS CADÊ O SERTÃO?!

 

MUTAÇÃO DE APOTEOSE DO OFICINA ESTREIA NA VIRADA CULTURAL EM SÃO PAULO. MAS CADÊ O SERTÃO?!

 

O que se segue são vagas conjeturas. Atravessamo-lo no prelúdio de um estio ardente e, vendo-o apenas nessas quadra, vimo-lo sob o pior aspecto. O que escrevemos tem o traço defeituoso dessa impressão isolada, desfavorecida, ademais, por um meio contraposto à serenidade do pensamento, tolhido pelas emoções da guerra. (CUNHA, 1985, p. 110)

 

Estreou na Virada Cultural de São Paulo, dia 27 de maio de 2023, o novo trabalho do Teatro Oficina, intitulado: Mutação de Apoteose.  O Mutação ou A Mutação se auto define como um “acontecimento cênico-musical”, “é um carnaval multiespécie, é uma filosofia vegetal, é uma ficção especulativa contra a monocultura do pensamento, é um ato cosmopolítico de teatro, é um espetáculo de transmutação para a companhia, é a invenção de um mundo”, mas acaba se atropelando justamente pelo excesso de elucubrações e de elenco.  

O espetáculo “Mutação de Apoteose”, é inspirado em trecho de “A terra”, primeira parte de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Estreou na Sessão de Abertura da 17ª Festa Literária Internacional de Paraty – Flip em 2019, realizada pela Universidade Antropófaga com direção artística da atriz Camila Mota.

Pelas redes sociais e pelo Instagram da companhia viam-se as chamadas entusiasmadas e inflamadas com frases de efeito do elenco sobre esse trabalho/experimentação. Umas das inspirações é a obra literária: “Os Sertões” de Euclides da Cunha.

Lá vem mais cariocas ou paulistas falando do Nordeste ou da Bahia! Em tempos de decolonialidade ou do termo decolonial em alta, esse não é o único equívoco cometido pelo grupo. O próprio Euclides da Cunha era carioca e foi enviado como correspondente ao Sertão da Bahia, pelo jornal O Estado de São Paulo, para cobrir a guerra no município de Canudos. “Do seu lugar de fala de homem branco, republicano, urbano, habitante do litoral, ex-militar e fruto de uma educação europeizada, Euclides enxergava o mundo por meio de instrumentos ideológicos que eram incapazes de darem conta do que havia visto no sertão de Canudos.” como diz o jornalista Fausto Salvatori no seu excelente artigo: “Os Sertões”, de Euclides da Cunha: o racista que denunciou um genocídio. Mas voltemos a fruição da experiência onde um elenco numeroso e polifônico  e a encenação  e dramaturgia não dão conta do emaranhado de referências dessa geração desconstruide e intensa.

Nessa confusão Babilônica de vozes e discursos, a encenadora Camila Mota deve ter tido muito trabalho para tentar dar uma cara a essa ficção especulativa contra a monocultura do pensamento. Conhecemos a força e trajetória dessa artista! É evidente que Camila quebra um patriarcado dentro do Oficina encabeçando essa direção, (queria ver mais Cacilda, Camila, mais Cacilda com mais exclamações!!!!!) porém, nessa encenação em alguns pontos ela consegue êxito, noutros não.

O Oficina é um território conhecido do teatro paulistano e nacional e Camila sabe disso e usa tudo o que consagrou aquele teatro, como o melhor teatro do mundo, segundo o The Observer, do jornal  inglês dominical do The Guardian, a seu favor.

E que saudade do Oficina! Nesse ínterim, a encenadora explora todo o espaço cênico, fosso, céu aberto, área externa, vídeos com imagens, outra marca registrada do daquele Te-Ato.

Há uma previsibilidade para um público amante daquele teatro, e não sei se isso é bom ou ruim, mas a encenação não empolga como outros trabalhos anteriores da Universidade Antropófaga como: “Rito da Primeira Estação Pau Brasil” (2015) que revelou a maravilhosa atriz trans Wallie Ruy. Em Mutação o elenco poderia ser menor, pois um elenco numeroso atrapalha mais que ajuda, sem falar que a atuação de coro proposta pelo Oficina muitas vezes é desconhecida pelos novos atores e atrizes que ali pisam. Atuar, ou simplesmente existir naquele espaço não é fácil e as receitas stanislavskianas ou performáticas dos atores poucos valerão. Nessa tentativa de atuar e ser presença ou se fazer presente em cena vale tudo, até mesmo muitas caras e bocas e “carão”! É notório ver em cena, de cima da plateia, onde nada nos escapa, o desconforto de alguns, ou o corpo de cavalo morto para usar uma expressão do próprio Euclides da Cunha nos Sertões, de outros.

Quem salva o elenco, sem dúvidas, são os atuadores nordestinos e negres ali presentes.

Percebe-se nessa montagem uma profusão de atuadores nordestinos, (graça a Deus,)  que salvam o trabalho, assim como um país como nessa última eleição! Destaque total para atriz de Feira de Santana, Pitty Ferreira, que como candeeiro alumia o olhar do expectador. Ela aproveita seu estado de cena para encantar a plateia como iara catingueira, e quando aparece com uma sanfona tocando, mostra definitivamente para que veio. Fiquem de olho nessa moça!  Dan Salas e  Joel Carlos também não passam despercebidos em suas aparições. Loci, Loci!

O nosso olhar vageia e acaba pairando nas bacantes e sátiros cobras criadas do Oficina que agregam um valor altíssimo a encenação. Sem eles a fruição de acontecimento cênico musical poderia ser bem pior. Letícia, Nash, Dani, Ma Dalourzi, Cyro, Tulio, Kelly, Sylvia, Marcio Telles e uma Jennifer Glass plena na pista são um deleite daquele teatro, sem falar na luxuosa banda com o muso multiartista Gui Calzavara que fariam qualquer atuador se esmerar mais um pouco ao pisar e andar naquele terreiro eletrônico sagrado.  Não sabe brincar não desce pra pista! Andar, simplesmente andar pode parecer algo bobo para um atuadore, mas não é!

O elenco é afinado ao cantar, mas ainda está atrapalhado nas marcações de cena. Há momentos e imagens bonitas, como as entradas de Iemanjá e Oxum, que na rua já experimentadas anteriormente pelo Oficina soam infinitamente mais potentes, (para usar uma palavra da moda, dos que mal sabem o que é um rizoma), e a “passeata vermelha,” (de arrepiar!) que remete a tantas lutas que passamos nesse pais tropical.

O número cantado da atriz May Tuti dá seu nome, incorporado no seu corpo discurso todas as vozes das mulheres pretas que já passaram por aquele espaço, batendo a cabeça para Cellia Nascimento, Denise Assunção e muitas outras! Já falei delas noutro trabalho do Oficina. (http://marcelobenigno.blogspot.com/2015/11/felicidade-clandestina-misterios.html).

O segundo ato do trabalho é desnecessário, pelo menos como espetáculo. Como pesquisa do coletivo, talvez funcione. O elenco entra cansado em cena lembrando do nosso cansaço também. Até a música colorida perde samba e ritmo. Poderia ser mais enxuto, mais seco, mais caatinga. Falta caatinga na Apoteose de Camila! Numa hora que se diz na encenação claramente de sertão, entra uma atriz sarará desfilando um vestido de calda, esburacado preto,  quase  uma alta costura da  coleção outono-inverno 2022 de Jean-Paul Gaultier ou um modelo do desfile do SPFW desse mês, numa tentativa de representação  contemporânea da seca?! (...) Falta vivencia da seca e sertão ali, falta apoteose sertaneja, falta ali “caititus esquivos”, os “queixadas de canela ruiva” as “emas velocíssimas”, as “seriemas de vozes lamentosas”, as “sericóias vibrantes”, as “suçuaranas”, os “mocós espertos” e ainda os “veados ariscos” e os “novilhos desgarrados”. (CUNHA, 1985, p. 127).

Ai que saudade eu tenho da Bahia! Ai Euclides da Cunha, digo a cidade não o escritor!

“Galga-se uma ondulação qualquer - e ele se desvenda ou se deixa adivinhar, ao longe, no quadro tristonho de um horizonte monótono em que se esbate, uniforme, sem um traço diversamente colorido, o pardo requeimado das caatingas” (CUNHA, 1985, p. 99)

Ao final da estreia a atriz Sylvia Prado fala da difícil missão de Camila sobre a encenação, sem recursos, como elenco numeroso nos oito meses de trabalho etc, etc, etc.

O que não fica claro se o resultado ali é fruto da Escola da Universidade Antropófaga num resultado de vivências ou estudos, ou do Oficina. Esse novo grupo de jovens Cecillers é o novo Oficina agora? Não entendi!

Há além da Universidade Antropófaga outros grupos de estudos e formação de atores espalhados pelo Brasil com intuitos parecidos, como o Galpão Cine Horto do Grupo Galpão em Belo Horizonte, a Terreira da Tribo do Ói Nóis aqui Traveiz,  no Rio Grande do Sul, a Universidade Livre do Teatro Vila Velha em Salvador, as Oficinas do Caçuá de Teatro em Conquista...

Definir os formatos e discursos talvez seria mais proveitoso! Quem é o ator/ atriz ou atuadore que não gostaria de atuar no Teatro Oficina com toda sua estética e recursos? Como o Teatro Oficina pode ser mais acessível como centro de estudos de forma mais organizada e acessível para pessoas, estudantes ou pesquisadores? Como compartilhar mais tanta história e memorias daquele espaço?

Falando em memorias é impossível desassociá-las do Oficina completando seus 65 anos de vida e trajetória. Pisar no solo sagrado do Oficina requer muita responsabilidade, trabalhos intensos, estudos, vivências que talvez só serão percebidos por alguns com muitos calos nas mãos, chão e janelas de estrada, estudos, experiências no corpoartediscurso ou de muita farinha e pirão de mocotó. ( Ops, os paulistanes  e Cecilliers não comem nem farinha nem mocotó, desculpem esse bode véio catingueiro, caipira simplório como descreve o autor carioca inspirador para esta encenação.)

Vale a pena assistir para matar a saudade do Oficina e de Zé Celso, nosso eterno Exu das Artes.

Em Mutação de Apoteose o grande destaque protagonista pulsante é o Teatro Oficina, sem dúvidas!


SERVIÇO:

Mutação de Apoteose

TEMPORADA: 27/05 a 23/07, sexta a domingo.

Na estreia: 27/05 às 21h 28/05 às 19h

Depois, sempre sexta e sábado às 20h; domingo às 19h

Local: Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona

Endereço: R. Jaceguai, 520 - Bixiga, São Paulo - SP


PS: As fotos aqui postadas são do ensaio aberto publicadas no facebook de Jennifer Glass. Créditos das fotos: Gal Oppido