quinta-feira, 26 de setembro de 2013

POR QUE EU DANÇO?! EVOCANDO A FORÇA DA PRIMAVERA- NASCER E MORRER EM OSTARA



POR QUE EU DANÇO?!
EVOCANDO A FORÇA DA PRIMAVERA- NASCER E MORRER EM OSTARA
Uma apologia as políticas públicas para a arte, cultura e formação de platéia na Bahia 





Tive a oportunidade de acompanhar de perto a temporada do Espetáculo Ostara- Primaveras em Sagração, dos alunos dos cursos de Licenciatura em Dança e Teatro da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB- JEQUIÉ, dirigido pelo professor e coreógrafo conquistense Aroldo Fernandes. O trabalho estreou na cidade de origem com uma calorosa resposta da platéia e foi selecionado, através de edital público, para compor a programação do Projeto Quarta que Dança, promovido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Tal projeto completou em 2013, 15 anos de produções e espetáculos de dança em Salvador, inicialmente abrigado no Teatro do Spaço Xisto Bahia e só, recentemente, saindo de lá dando abertura a outros tipos de dança, espaços, cidades e formatos. Um dos objetivos do Projeto é contribuir para a difusão e visibilidade da produção atual da dança na Bahia e por conseguinte, a formação de platéia para a dança. Mas será que depois de 15 anos, e nesse novo formato, tem conseguido?!


Antes que este texto vire um texto manifesto sobre o que é realmente uma política de formação de platéia ou de interiorização- é o temo que eles usam para dizer que a cultura e verbas estão indo para o interior do estado- e ainda mais com a notícia do cancelamento do Quarta que Dança e de outros por uma ordem do senhor Rei Governador : “A medida se deve aos Decretos nºs 14.682 e 14.710/2013, que determina o contingenciamento no orçamento das secretarias e órgãos estaduais e estabelece medidas para a gestão de despesas e custeio, respectivamente”, gostaria de falar do espetáculo e tentar responder a questão que intitula estas linhas.

De inicio preciso falar de Aroldo Fernandes, o coreógrafo, que através de seu trabalho extremamente cuidadoso e de um requinte visível em toda sua dramaturgia, consegue montar uma obra inspirada na Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, numa data comemorativa de 100 anos de sua primeira execução pública, com estudantes em formação e no sertão jequiéense, com um rigor invejável! Só por este fato o trabalho tem um mérito importante e revela a forma de como ele, artista, coreografo, pesquisador e professor vê sua arte dentro e fora do seu habitat. Os mais sisudos da capital certamente falariam: Nossa, montar a Sagração da Primavera, um texto tão clássico e complexo, com meninos do interior?! E porque não? Só se monta no interior espetáculos populares? Qual a diferença do artista e profissional das artes da cena, que mora e produz no interior, para os artistas das capitais?!



PRA QUEM EU DANÇO?!

Aroldo já tinha participado do Projeto Quarta que Dança, em 2003, em Salvador, com o lindo trabalho “Cartas de Amor” junto com bailarina e também pesquisadora Iara Cerqueira e muito desse seu cuidado em coreografar e produzir se reflete neste trabalho na UESB, que junto a esse elenco de intérpretes criadores consegue criar um trabalho solfejado por um ritual sabbático, dentro da obra da Sagração.  

Seqüências circulares representam estágios de vida e morte e desenham figuras e pentagramas no espaço, símbolos fortes e presentes nas cerimônias primaveris. O vigor das seqüências e a atuação de um elenco bastante uníssono transpõe para a cena uma energia contagiante. O coreógrafo e sua equipe teve um cuidado especial com a estética e visual do trabalho, desde o figurino- destaque para os plásticos bolhas usados em grandes saias; à belíssima maquiagem- tatuagem- corporal que lembra as tatuagens de casamento indianos tão feminina e portadora de bons presságios. O cenário transformou o palco com folhas de eucalipto-doce de onde o cheiro exalava com os movimentos rápidos dos intérpretes. Galhos, troncos, mastros, nada é colocado sem significado num trabalho onde o signo é uma quase oferenda a deusa mãe.


As coreografias são fortes e a presença dos intérpretes também, destaque para Cinara Abreu que representa uma espécie de sacerdotisa - mãe - Gaia e dá as nuances de mudanças no trabalho, seguida da presença também marcante, dos dançarinos intérpretes Thiana  Barbosa, Maéli de Marcos, Samara Martins e Pyter Rodrigues. No elenco composto de seis homens e onze mulheres, literalmente neste ritual feminino os homens não têm vez, transferindo o foco necessário para a presença que vem do ventre, nesta dança ritual fertilizada. Só por esses detalhes o trabalho já seria bom, mas para marcar o final, milhares de imagens invadem e cobrem do palco ao corpo dos dançarinos, projetadas em toda sua extensão.
Em Salvador, no teatro do Centro Cultural Plataforma, neste momento a platéia que insistia em conversar desde o inicio da sessão, calou-se, maravilhada. 


POR QUE EU DANÇO?

Mas para que tanto requinte, pesquisa e zelo levados sem nenhum tipo de preparação num projeto que pretende ser um importante meio de difusão da produção atual da dança na Bahia e de formação de plateia? Formar plateia e difundir a dança não é  somente abrir um teatro e chamar o povo da rua para ver um espetáculo de graça, sem nenhum tipo de preparação anterior. Em Plataforma, por exemplo, o barulho do público presente foi tão grande e desagradável que incomodou a todos.  Eu, já parei meus espetáculos em Conquista, por muito menos e fiquei extremamente incomodado! Isto é formação de platéia?! Agora pensem comigo, na concepção inicial desse trabalho, as dançarinas intérpretes dançaram, em Jequié, de peito desnudo, e nada demais aconteceu, imagine se isso tivesse acontecido na Plataforma?! No TCA, em 2005, um elenco de dez dançarinos negros dançou nu “O Samba do Crioulo Doido”, de Luiz de Abreu, no Ateliê de Coreógrafos Brasileiros. 

PRA QUEM EU DANÇO?!

Numa obra toda decodificada como Ostara, merecia-se, no mínimo, já que não é uma platéia do TCA e tão pouco do Xisto Bahia, de onde o projeto migrou, uma contextualização ou uma apresentação no inicio, avisando a plateia em formação, do que se tratava o trabalho, e relembrando a educação em espaços de espetáculos.  Engraçado, fazemos isso quando se precisa em projetos similares no interior...  Ai fico me perguntando, mais uma vez, será que não foi intencional colocar o grupo do interior na periferia de Salvador sem nenhum tipo de preparo e a notória falta de formação de plateia?! Duplo preconceito?! Pausa reflexiva.



O Teatro do Centro Cultural Plataforma é bem equipado, arrumado embora os técnicos soassem bastantes ríspidos em alguns momentos. Fico pensando, macaco velho de Festivais e palcos do Brasil por quê, no nosso estado, somos tão maltratados e subjugados?!
Apesar de tudo isso, de muitas falhas na produção, (o elenco sequer teve os programas do projeto para comprovar sua atuação, pois os mesmos acabaram antes de chegar) o trabalho se manteve intacto e forte.

O elenco segurou com garra uma plateia difícil e mal educada e brilhou, mostrando mais uma vez a força do artista e pesquisador do interior.
Ostara iria percorrer mais três cidades da Bahia, atingindo com isso outros territórios de identidade do estado, sendo que a maioria dos contemplados neste projeto preferiram ficar na capital.  Pausa de novidade.

Hoje, a classe artística de Salvador, que diz representar toda a Bahia, diante dos cortes em vários projetos e editais, tenta se reunir para tentar alguma reivindicação conjunta. Se for como os últimos dois Festivais de Teatro que aconteceram recentemente na capital baiana, onde sequer verificou a presença de nenhum grupo do interior do estado, (então são Festivais só de Salvador e não da Bahia inteira e seus 417 municípios como dizem) os artistas do interior estarão “lascados” como se diz no bom verbete popular local. 

To cansado de ficar toda hora mostrando aos novos gestores, produtores, pseudo artistas descolados e modernos das capitais, políticos e afins, que existimos, que temos uma história de luta, trabalho e resistência como artistas interioranos.  Pesquisando sobre a formação do artista do interior através da experiência do Grupo Caçuá de Teatro de Vitória da Conquista, que completou 15 anos agora em 2013, num mestrado feito fora do estado pude reconhecer e valorizar ainda mais o meu trabalho!

Ficar nesse gueto soteropolitano onde a política partidária, colonizadora quer mandar ou manda nos artistas locais é extremante desgastante e não combina com o meu perfil.
O interior ganha com espetáculos como Ostara, com pesquisas e trabalho em arte de seus filhos interioranos, que infelizmente, e muitas vezes, são obrigados a migrar para outras capitais, buscando espaços, reconhecimento, respeito e trabalho.  Um exemplo disso foi o convite da College of Southern Nevada feito ao coreógrafo Aroldo Fernandes, através de suas estadas fora do país, para levar um grupo de sete alunos da UESB, do curso de Licenciatura em Dança, para participar do "Las Vegas Dance in the Desert Festival" neste semestre, onde ministrariam oficinas e fariam a apresentação de três coreografias do repertório do grupo baiano. Ironicamente também era o aniversário de 15 anos do Festival de lá. Apesar do reconhecimento pelo trabalho de Aroldo e de como esta viagem seria importante para o grupo, e para a difusão da produção atual de dança na Bahia, a viagem embargou na falta de apoio local e estadual. 

POR QUE EU DANÇO?!

Se em Salvador as verbas e apoios para a cultura e arte estão restritos e boicotados, em Vitória da Conquista, que também há exatos 15 anos, justamente por uma política partidária ineficiente e excludente na área cultural, se anula de fazer algo pela cultura, arte e artistas locais. São 15 anos, minha gente, e memória não se apaga ou se esquece assim: vive-se!


POR QUE EU DANÇO?!



Meu evoé e admiração ao elenco e equipe de Ostara- Primaveras em Sagração, nesse trabalho lindo, que não deixa nada a desejar a nenhum trabalho de capital, e olha que eu ando e vejo muita coisa por ai... Parabéns a Aroldo pela perspicácia e paciência, pois peço a Dionísio, diariamente, que renove a minha, pois do jeito que a cultura e arte andam por estas bandas baianas, migrar novamente será o destino mais provável para esse sátiro catingueiro cansado de guerra e da desvalorização da arte e artistas no interior.


E como em Ostara coloco todos esses preconceituosos, preguiçosos, ensaletados de plantão (que ficam em suas salinhas ditando regras não experienciadas pela cultura e arte), com comparações e oportunidades desiguais que atravancam  os caminhos e o andamento do trabalho do artista das cenas na Bahia, sobretudo no interior,  dentro  dessa roda de fertilidade e energia, e nela, peço somente uma coisa: Tudo o que fizeres aqui voltaras para você três, voltará para você três vezes, voltará para você três vezes...
Salve a deusa!
Dignidade, respeito e valorização ao artista do interior.

POR QUE EU DANÇO?!

Para mudar esta situação, pois se não o fizer, literalmente sou eu quem “danço”!
Para os 15 anos do Caçuá!
Quem quiser acompanhar mais sobre o MOVAI:

As fotos usadas nesta publicação são de Patrícia Carmo.
Cartaz do espetáculo para estreia no Engenho de Composição, em Jequié. Design de André Bomfim, sobre foto de Érica Daniela.

Marcelo Benigno é ator, arte educador, professor de teatro, diretor do Grupo Caçuá de Teatro, em Vitória da Conquista- BA, idealizador do MOVAI- Movimento de Valorização do Artista do Interior.