MUTAÇÃO
DE APOTEOSE DO OFICINA ESTREIA NA VIRADA CULTURAL EM SÃO PAULO. MAS CADÊ O
SERTÃO?!
O
que se segue são vagas conjeturas. Atravessamo-lo no prelúdio de um estio
ardente e, vendo-o apenas nessas quadra, vimo-lo sob o pior aspecto. O que
escrevemos tem o traço defeituoso dessa impressão isolada, desfavorecida,
ademais, por um meio contraposto à serenidade do pensamento, tolhido pelas
emoções da guerra. (CUNHA, 1985, p. 110)
Estreou na Virada Cultural
de São Paulo, dia 27 de maio de 2023, o novo trabalho do Teatro Oficina, intitulado:
Mutação de Apoteose. O Mutação ou
A Mutação se auto define como um “acontecimento
cênico-musical”, “é um carnaval multiespécie, é uma filosofia vegetal, é
uma ficção especulativa contra a monocultura do
pensamento, é um ato cosmopolítico de teatro, é um espetáculo de
transmutação para a companhia, é a invenção de um mundo”, mas acaba se
atropelando justamente pelo excesso de elucubrações e de elenco.
O espetáculo “Mutação de Apoteose”,
é inspirado em trecho de “A terra”, primeira parte de Os Sertões, de
Euclides da Cunha. Estreou na Sessão de Abertura da 17ª Festa Literária
Internacional de Paraty – Flip em 2019, realizada pela Universidade Antropófaga
com direção artística da atriz Camila Mota.
Pelas redes sociais e pelo
Instagram da companhia viam-se as chamadas entusiasmadas
e inflamadas com frases de efeito do elenco sobre esse trabalho/experimentação.
Umas das inspirações é a obra literária: “Os Sertões” de Euclides da Cunha.
Lá vem mais cariocas ou
paulistas falando do Nordeste ou da Bahia! Em tempos de decolonialidade ou do
termo decolonial em alta, esse não é o único equívoco cometido pelo grupo. O
próprio Euclides da Cunha era carioca e foi enviado como correspondente ao
Sertão da Bahia, pelo jornal O Estado de São Paulo, para cobrir a guerra
no município de Canudos. “Do seu lugar de fala de homem branco, republicano,
urbano, habitante do litoral, ex-militar e fruto de uma educação europeizada,
Euclides enxergava o mundo por meio de instrumentos ideológicos que eram incapazes
de darem conta do que havia visto no sertão de Canudos.” como diz o jornalista
Fausto Salvatori no seu excelente artigo: “Os Sertões”, de Euclides da
Cunha: o racista que denunciou um genocídio. Mas voltemos a fruição da
experiência onde um elenco numeroso e polifônico e a encenação e dramaturgia não dão conta do emaranhado de
referências dessa geração desconstruide e intensa.
Nessa confusão Babilônica
de vozes e discursos, a encenadora Camila Mota deve ter tido muito trabalho
para tentar dar uma cara a essa ficção especulativa contra a monocultura do
pensamento. Conhecemos a força e trajetória dessa artista! É evidente que
Camila quebra um patriarcado dentro do Oficina encabeçando essa direção, (queria
ver mais Cacilda, Camila, mais Cacilda com mais exclamações!!!!!) porém, nessa encenação
em alguns pontos ela consegue êxito, noutros não.
O Oficina é um território
conhecido do teatro paulistano e nacional e Camila sabe disso e usa tudo o que consagrou
aquele teatro, como o melhor teatro do mundo, segundo o The Observer, do jornal inglês dominical do The Guardian, a seu
favor.
E que saudade do Oficina!
Nesse ínterim, a encenadora explora todo o espaço cênico, fosso, céu aberto, área
externa, vídeos com imagens, outra marca registrada do daquele Te-Ato.
Há uma previsibilidade para
um público amante daquele teatro, e não sei se isso é bom ou ruim, mas a
encenação não empolga como outros trabalhos anteriores da Universidade
Antropófaga como: “Rito da Primeira Estação Pau Brasil” (2015) que revelou a
maravilhosa atriz trans Wallie Ruy. Em Mutação o elenco poderia ser menor, pois
um elenco numeroso atrapalha mais que ajuda, sem falar que a atuação de coro proposta
pelo Oficina muitas vezes é desconhecida pelos novos atores e atrizes que ali
pisam. Atuar, ou simplesmente existir naquele espaço não é fácil e as receitas
stanislavskianas ou performáticas dos atores poucos valerão. Nessa tentativa de
atuar e ser presença ou se fazer presente em cena vale tudo, até mesmo muitas
caras e bocas e “carão”! É notório ver em cena, de cima da plateia, onde nada
nos escapa, o desconforto de alguns, ou o corpo de cavalo morto para
usar uma expressão do próprio Euclides da Cunha nos Sertões, de outros.
Quem salva o elenco, sem
dúvidas, são os atuadores nordestinos e negres ali presentes.
Percebe-se nessa montagem
uma profusão de atuadores nordestinos, (graça a Deus,) que salvam o trabalho, assim como um país como
nessa última eleição! Destaque total para atriz de Feira de Santana, Pitty
Ferreira, que como candeeiro alumia o olhar do expectador. Ela aproveita seu
estado de cena para encantar a plateia como iara catingueira, e quando aparece
com uma sanfona tocando, mostra definitivamente para que veio. Fiquem de olho
nessa moça! Dan Salas e Joel Carlos também não passam despercebidos em
suas aparições. Loci, Loci!
O nosso olhar vageia e
acaba pairando nas bacantes e sátiros cobras criadas do Oficina
que agregam um valor altíssimo a encenação. Sem eles a fruição de acontecimento
cênico musical poderia ser bem pior. Letícia, Nash, Dani, Ma Dalourzi, Cyro,
Tulio, Kelly, Sylvia, Marcio Telles e uma Jennifer Glass plena na pista são um
deleite daquele teatro, sem falar na luxuosa banda com o muso multiartista Gui
Calzavara que fariam qualquer atuador se esmerar mais um pouco ao pisar e andar
naquele terreiro eletrônico sagrado. Não
sabe brincar não desce pra pista! Andar, simplesmente andar pode parecer algo
bobo para um atuadore, mas não é!
O elenco é afinado ao
cantar, mas ainda está atrapalhado nas marcações de cena. Há momentos e imagens
bonitas, como as entradas de Iemanjá e Oxum, que na rua já experimentadas anteriormente
pelo Oficina soam infinitamente mais potentes, (para usar uma palavra da
moda, dos que mal sabem o que é um rizoma), e a “passeata vermelha,” (de
arrepiar!) que remete a tantas lutas que passamos nesse pais tropical.
O número cantado da atriz May Tuti dá seu nome, incorporado no seu corpo discurso todas as vozes das mulheres pretas que já passaram por aquele espaço, batendo a cabeça para Cellia Nascimento, Denise Assunção e muitas outras! Já falei delas noutro trabalho do Oficina. (http://marcelobenigno.blogspot.com/2015/11/felicidade-clandestina-misterios.html).
O segundo ato do trabalho
é desnecessário, pelo menos como espetáculo. Como pesquisa do coletivo, talvez funcione.
O elenco entra cansado em cena lembrando do nosso cansaço também. Até a música
colorida perde samba e ritmo. Poderia ser mais enxuto, mais seco, mais caatinga.
Falta caatinga na Apoteose de Camila! Numa hora que se diz na encenação claramente
de sertão, entra uma atriz sarará desfilando um vestido de calda, esburacado
preto, quase uma alta costura da coleção outono-inverno
2022 de Jean-Paul
Gaultier ou um modelo do desfile do SPFW desse mês, numa tentativa de representação
contemporânea da seca?! (...) Falta vivencia
da seca e sertão ali, falta apoteose sertaneja, falta ali “caititus esquivos”, os
“queixadas de canela ruiva” as “emas velocíssimas”, as “seriemas de vozes
lamentosas”, as “sericóias vibrantes”, as “suçuaranas”, os “mocós espertos” e
ainda os “veados ariscos” e os “novilhos desgarrados”. (CUNHA, 1985, p. 127).
Ai que saudade eu tenho da
Bahia! Ai Euclides da Cunha, digo a cidade não o escritor!
“Galga-se uma ondulação qualquer - e ele se desvenda ou se deixa adivinhar, ao longe, no quadro tristonho de um horizonte monótono em que se esbate, uniforme, sem um traço diversamente colorido, o pardo requeimado das caatingas” (CUNHA, 1985, p. 99)
Ao final da estreia a
atriz Sylvia Prado fala da difícil missão de Camila sobre a encenação, sem
recursos, como elenco numeroso nos oito meses de trabalho etc, etc, etc.
O que não fica claro se o
resultado ali é fruto da Escola da Universidade Antropófaga num resultado de vivências
ou estudos, ou do Oficina. Esse novo grupo de jovens Cecillers é o novo Oficina
agora? Não entendi!
Há além da Universidade Antropófaga
outros grupos de estudos e formação de atores espalhados pelo Brasil com intuitos parecidos, como o Galpão Cine Horto do Grupo Galpão em Belo Horizonte,
a Terreira da Tribo do Ói Nóis aqui Traveiz, no Rio Grande do Sul, a Universidade Livre do
Teatro Vila Velha em Salvador, as Oficinas do Caçuá de Teatro em Conquista...
Definir os formatos e
discursos talvez seria mais proveitoso! Quem é o ator/ atriz ou atuadore que
não gostaria de atuar no Teatro Oficina com toda sua estética e recursos? Como
o Teatro Oficina pode ser mais acessível como centro de estudos de forma mais organizada
e acessível para pessoas, estudantes ou pesquisadores? Como compartilhar mais
tanta história e memorias daquele espaço?
Falando em memorias é
impossível desassociá-las do Oficina completando seus 65 anos de vida e
trajetória. Pisar no solo sagrado do Oficina requer muita responsabilidade, trabalhos
intensos, estudos, vivências que talvez só serão percebidos por
alguns com muitos calos nas mãos, chão e janelas de estrada, estudos, experiências
no corpoartediscurso ou de muita farinha e pirão de mocotó. ( Ops, os paulistanes
e Cecilliers não comem nem farinha nem
mocotó, desculpem esse bode véio catingueiro, caipira simplório
como descreve o autor carioca inspirador para esta encenação.)
Vale a pena assistir para
matar a saudade do Oficina e de Zé Celso, nosso eterno Exu das Artes.
Em Mutação de Apoteose o
grande destaque protagonista pulsante é o Teatro Oficina, sem dúvidas!
SERVIÇO:
Mutação de Apoteose
TEMPORADA: 27/05 a 23/07,
sexta a domingo.
Na estreia: 27/05 às 21h
28/05 às 19h
Depois, sempre sexta e
sábado às 20h; domingo às 19h
Local: Teat(r)o Oficina
Uzyna Uzona
Endereço: R. Jaceguai,
520 - Bixiga, São Paulo - SP
PS: As fotos aqui postadas são do ensaio aberto publicadas no facebook de Jennifer Glass. Créditos das fotos: Gal Oppido