Teatro da Pimenta- Para
que serve um dramaturgista?!
Penúltimo Diário
de Bordo -SP Escola de Teatro- Segundo
Semestre 2019
Processos de
“A Risonha e Límpida História da Democracia” N7
“Pimentas são frutinhas coloridas que têm poder para provocar
incêndios na boca. Pois há ideias que se assemelham às pimentas: elas podem
provocar incêndios nos pensamentos. Nietzsche era um especialista em ideias
incendiárias. Um eremita que vivia na floresta, ao ver Zaratustra descer das
montanhas para as planícies, percebeu que ele estava a fim de pôr fogo no mundo
com as suas ideias. Zaratustra sabia que suas ideias queimavam e que muitas
pessoas, ao lê-lo, “pensariam que estavam devorando fogo e queimariam suas
bocas”. Mas, para se provocar um incêndio, não é preciso fogo. Basta uma única
brasa. Um único pensamento-pimenta...” Rubens Alves
Agora eu posso falar, ou melhor, escrever! No início falaram
que o dramaturgista não tinha voz. Parei. Calei. Respirei. O que vou fazer
agora? Libras, Marcel Marceau, Luis Louis?
Existem alguns adendos, ou referências, ou notas de roda pé a
serem feitos nesse texto para se entender mais sobre o processo criativo e de
formação no curso de Dramaturgia da SP Escola de Teatro, mas prefiro, agora, ir
escrevendo para não perder o fluxo da escrita e das imagens. Mas como é um diário
de bordo, minha primeira intenção é primeiro o registro para posteriores
aprofundamentos, então, como baiano que sou, o registro é lento, leve,
descompromissado, à princípio. Ingressei
na SP Escola de Teatro no segundo semestre de 2019, então, ainda estou
conhecendo e engatinhando na pedagogia e metodologia posposta por ela e este é
um dos meus diários de bordo.
A função do dramaturgista ainda é considerada um luxo em companhias ou grupos teatrais brasileiros. Fala-se muito mais em "assistente de direção" ou outras nomeações para esta função. Elx é aquelx que não é x autorx do texto dramático, mas que
desempenha uma série de atividades que efetivamente envolvem a dramaturgia. É
conhecidx como aquelx que articula relações, levanta material, mas não pode ter
voz. O dramaturgista não escreve o texto, quem escreve o texto dramático é o dramaturgo.
A professora convidada, que foi dramaturgista na Alemanha, onde
a figura do Dramaturgista surgiu, foi enfática.
Então, o dramaturgista é como uma ekedi, professora?! Ekedi é o nome dado, de acordo cada nação de
candomblé, para um cargo feminino de grande valor: o de “zeladora dos orixás”.
A ekedi, na maioria das casas, também é chamada de mãe e exerce a função de
dama de honra do orixá regente da casa. É dela a função de zelar, acompanhar,
dançar, cuidar das roupas e apetrechos dos orixás da casa. Ela faz de tudo, é a
figura feminina que mais trabalha em um terreiro, prepara ebós, arruma quartos
e roupas de santo, conhece os rituais, vai ao roncó, cozinha, lava, limpa, serve,
mas está atrelada e subordinada à voz do pai ou mãe de santo do terreiro.
O dramatugista é uma ekedi do teatro. Para ser uma ekedi, ou
melhor, um dramatugista, não é fácil, pois além de saber tudo que está se passando
ao redor, elx tem que saber a hora em que
pode falar. Oxe, mas você não havia dito que o dramatugista não tinha voz e que
as ekedis não podiam falar?!
Em terreiros teatrais, comumente, os pais/mães de santos
diretores muitas vezes sucumbem à voz das ekedis, dos ogãs, das iaôs. Saber reconhecer hierarquias é bastante importante
tanto no teatro como no ilê, saber quem comanda o leme da embarcação, acatando
a direção do vento e vendo as rotas é fundamental. No nosso caso, a direção
compartilhada do nosso barco, feita por dois diretores, foi bastante generosa, respeitosa, sábia e enriquecedora para o grupo, ekedis, ogãs e abiãs.
A ekedi sabe, o ogã sabe que sem a sua participação o comandante/
pai /mãe de santo não comanda uma embarcação sozinho. Um abiã tem que saber o
caminho que tem a percorrer. Perceber isso é ter sabedoria e maturidade.
Trabalhar na consciência do grupo, na energia criativa e colaborativa para elevar o
espirito coletivo do jogo, do axé, da festa.
Assim como no axé, o teatro precisa de ekedis que cozinhem os
saberes para fazer o ritual potente, brincante, vivo, com sabor e colorido, ainda mais numa
metrópole triste, acelerada, corrida, poluída, com cotação da bolsa, ligação de
telemarketing, corre-corre, caos. O teatro precisa ter gosto, energia e
colorido como o Axé para chegar e se fazer presente na vida das pessoas.
São Paulo é uma Meca e nesse cérebro do país tudo é muito
racional, corrido, preto e branco, pesado. Falta Axé em São Paulo, já diria meu
amigo babalorixá.
Por isso é necessário um Teatro da pimenta, da paçoca, da uva
ou um dramaturgismo dos sabores que dê o seu recado e contribuição, tornando-se,
realmente, uma experiência prazerosa, leve e tranquila para quem se religa com ele. É nesse teatro
que acredito! Um teatro popular onde os
sabores resgatam memórias, alimentam o corpo e a alma, ativam nossos estados ancestrais,
vitais para nos aliviar ou tirar dessa corrida pela sobrevivência ou dos
resquícios do consumismo nessa metrópole manchada pelo capitalismo, sem empatia
e cor.
Acreditar num teatro do encontro que potencialize uma experiência
em arte feliz, pulsante, alegre, produtiva, é ativar o nosso estado brincante,
da alegria do erê, do jogo de estar presente, garantindo o frescor e a
plenitude de cada experiência.
Começar com o jogo permitiu o N7 experimentar um trabalho
coletivo e participativo em sua totalidade onde todos jogavam, (ou seja, todas
as linguagens artísticas eram propositoras) indistintamente. Como foi lindo ver
a direção de Wander e Arisson abraçar essa ideia e permitir a todxs vivenciar uma
experiência de teatro de grupo, não meramente pedagógica. Falo isso, pois sou cria do teatro de grupo
na Bahia e muitas vezes os processos de cunho pedagógico não refletem a
realidade da vida e do mercado de trabalho na nossa área.
Na SP Escola de Teatro todos os criadores, das variadas linguagens,
formam um Núcleo onde cada área pesquisa em torno de um tema para culminar num
resultado cênico, coletivamente. Isso é maravilhoso mas é sempre um desafio conseguir unir todas as linguagens num único objetivo, numa mesma energia de grupo, pois cada linguagem quer mostrar o seu trabalho e pesquisa. Então já deu pra imaginar, né?!
O tema desse ano foi NECROPOLÍTICA. São três
momentos distintos até o produto final.
Começamos com o Jogo! Nossa primeira abertura foi um jogo de
bufões transformando notícias reais em fake
news, ao vivo, sem ensaio, só treinamento.
Assumimos o risco do jogo e nos
jogamos, literalmente, na força desses bufões. Foi massa o nosso "BufoNews". Muita gente achou que
havíamos ensaiando tudo, quando estávamos jogando com as improvisações e este
dramaturgista que vos escreve (agora e aqui eu posso, rs) escolhia as notícias
ao vivo a serem jogadas aos bufões que as transformavam e criavam na frente do
público! Uau! De celular na mão tudo pode virar notícia, até eleger um Presidente
da República desses!
No jogo do aqui e agora as fakes news só terão importância se acreditamos nelas. Em que teatro
em acredito? A quem o meu teatro atende?
Para quem eu jogo?! Para quê?!
Enquanto brincamos de ser Zeus ou Deus, mais uma pessoa é
afetada diretamente pela necropolitica na porta da sede do Brás, na praça Roosevelt,
nas ruas da capital paulista.
“São Paulo
tem mais pessoas morando na rua que população de 457 cidades paulistas”, diz a
reportagem. “
Em quatro
anos, a capital mais que duplicou número de pessoas em condição de rua.
Estima-se que sejam cerca de 33.700 mil desabrigados em São Paulo.” Não é fake
news! Não é teatro, é vida real! Necropolítica real.
Enquanto o nosso teatro não for mais potente e forte para tentar
resolver ou apontar soluções, saídas, linhas de fuga ou sei lá o que, sucumbiremos nas nossas próprias bolhas, sabiamente colocado no texto forte de
Elenice Zerneri.
No final do processo, o N7 encerrou as apresentações da Mostra
da Escola numa sessão intensa na plenitude de uma plateia participativa.
Que o reflexo visto do espelho da cena final seja mais forte que
a parábola que ela sinaliza e jogue no jogo da vida real todxs xs portadorxs
dos reflexos refletidos, onde além de brincar e se divertir, interfiram na ordem
das coisas, cenas, festa e da vida!
Um teatro da pimenta que não só dá cor e sabor mas que
seja inesquecível e necessário como numa oferenda a Exú, na qual esse ingrediente picante sempre está presente para movimentar e esquentar a vida. Evoé, Dionísio! Laroyê
Exú!
Agradecimento especial a Marici Salomão, Daniel Veiga e Silvia
Gomez, parceirxs nessa labuta e travessia que com generosidade, sabedoria e
muita finesse (é bom que se diga!) acolheram a minha baianidade de Chicó
com a desconfiança de Oxóssi nessa primeira etapa. E a minha turma do “Drama
com amor”, sigamos açucarados e apimentados, firmes e fortes nos afetos e sabores!
Axé, Laroyê, Evoé!
mb
PS: Selecionar fotos para colocar nessa publicação foi mais difícil que digitar o texto, rs, foram muitaaaas fotos e filmagens desse trabalho, preferi colocar as fotos do processo, tiradas por mim e pelo grupo, que representam nosso encontro feliz!
“Não gosto da vida em banho-maria, gosto de fogo, pimenta,
alho, ervas. Por um triz não sou uma bruxa. ” Martha Medeiros
“Pimenta nos olhos dos outros é refresco”. Ditado Popular
PIMENTA — O FRUTO E FOLHA DE EXU
A pimenta simboliza descendência e abundância. É cheia de
sementes e “explode” quando está suficientemente madura, espalhando fecundidade
e criatividade. As características morfológicas da pimenta, tipo dedo-de-moça,
da costa ou malagueta, cuja cápsula – fruto – contém inúmeras sementes expulsas
quando ocorre a maturação, são consideradas quentes – fogo – e elemento (fruto
ou folha) de Exu. Como todos os pimentos, é possuidora de um axé – força
fluídica – capaz de reforçar o poder da palavra quando algumas de suas sementes
são mastigadas liturgicamente na ponta da língua. Assim, nas invocações e
evocações, as pimentas são indicadas para potencializar o verbo dos oficiantes
para ligá-los ao Senhor dos Caminhos – Exu —, o que leva e traz, abre e fecha,
fazendo com que os cânticos tenham “força” etéreo-astral. As folhas das
pimentas, com maior ou menor concentração de princípios ativos, podem ser
preparadas adequadamente, dentro do fundamento e tradição de manejo adequado
dos terreiros, para uso litúrgico em pessoas astênicas (sentimentos mórbidos e
depressivos com enfraquecimento da vontade), comprovadamente magiadas,
auxiliando-as positivamente para o restabelecimento da saúde psíquica e física.
A pimenta é dispersora de fluídos pesados e negativos por ser
um fluído quente e desagregador. Pode ser usada para a proteção de ambientes,
plantadas em jardins ou em vasos, próximo a janelas e portas de entradas. Ao
mesmo tempo, também dispersa formas de pensamentos gerados por inveja e ciúmes,
o popular “olho grande”.
- ENCANTOS DE UMBANDA- Peixoto, Norberto. Editora: LEGIAO
PUBLICAÇOES
“Essas pimentas; acrescentai-lhes
asas e serão libélulas...” Basho
FICHA TÉCNICA N7
"A risonha e límpida história da democracia" conta,
através de imagens e fragmentos narrativos, os principais acontecimentos
políticos ocorridos no Brasil (ou na Grécia), de 2013 a 2019 (ou século V
a.C.). É possível que algo que nunca aconteceu esteja em perigo? Sem a
pretensão de realizar uma análise ou um manifesto, trabalha-se com a ideia de
colagem do sinistro. Do indizível. Do que, retirado o jogo da democracia
liberal, revela-se como a perpetuação da guerra contra os debaixo, disfarçada
de política. Os debaixo que são, sem saber, o alicerce de todo o sistema.
Atuadores Humor- Amanda Rodovalho, Davyd Rafael, Mayra Hartz,
Olivia Bassini, Vitor Ugo
Direção- Arisson Fabrício e Wander B.
Dramaturgia- Elenice Zerneri
Dramaturgista- Marcelo Benigno
Cenografia e Figurino- Ana Catarina, Mariana Cortez, Yuri Godoy
Sonoplastia- Fábio Martins e Natasha Hammel
Iluminação- Angel Taize e Julia Orlando
Técnicas de Palco- Thais Costa e Vitor Tatsumi.
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