sexta-feira, 13 de março de 2015

MUITO ALÉM DE TRANSMUTAR!

          MUITO ALÉM DE TRANSMUTAR!
A necessidade e experiência da arte e da performance para a vida!
Foto- Letícia Gomes

São Paulo corrida, mundo contemporâneo, terça-feira, trânsito.
Entre trocas de figurinos e reflexões chega o dia de abertura da Exposição Terra Comunal, de Marina Abramovic, no Sesc Pompeia com a Performance Transmutação da Carne do querido artista baiano Ayrson Heráclito. [http://www.marcelobenigno.blogspot.com.br/2015/02/transmutando-em-carne-arte-e-vida-entre.html]
A abertura foi as 18 horas, do dia 10 de março de 2015, mas todos os que iam performar chegaram as 13 horas no Sesc.

Foto-Acervo pessoal
Ayrson chega, cumprimenta a todos e com seu jeito doce e calmo, começa contextualizar e falar sobre a trajetória da Performance Transmutação da Carne, na Bahia. Olhos atentos a simplicidade do artista/professor/questionador, que aos poucos, vai formando seu corpo cultural de carne de charque e dendê. No bate papo, uma performer pergunta quais são os artistas que Freud ( codinome de Ayrson para os amigos) gosta ou admira no Brasil, e o baiano do interior fala dos grupos do Maranhão, do Nego Fugido de Acupe, distrito de Santo Amaro da Purificação (BA), dos Artistas Rastafaris, e de todo um Nordeste à parte e fora de uma seletista Semana de 22, afinal, o Brasil não é só São Paulo e Rio, Nordeste não é só Recife e Salvador...

Foto-  Óli de Castro
Dados os informes, fomos as marcas no espaço para a performance e depois nos paramentar de carne.

Eu, único baiano entre os selecionados para performar junto a Freud, fico pensando na diáspora negra e na minha, como artista interiorano, sertanejo e nordestino dentro daquele espaço projetado por Lina Bo Bardi e tomado pela obra de Marina Abramovic. A Exposição Terra Comunal [http://terracomunal.sescsp.org.br/] mobilizou muita gente e ficará até maio no Sesc Pompeia, com palestras, encontros, vivencias.
Penso de novo na importância da arte para as pessoas, para as cidades e como o investimento em cultura pode definir e mudar a histórias de tantas! Ayrson tem uma trajetória construída na labuta constante por espaços, pela quebra de paradigmas, sobretudo, tocando em temas como a cultura negra no Brasil e na Bahia, o candomblé e seus rituais. – Os símbolos são a linguagem de um artista. Não há como separar arte da cultura e da vida das pessoas.

Foto- Aline Alves

Hora de descer.

Todos prontos para o ritual. Ficar quase quatro horas imóvel, em silencio, ativo e esperando a hora de ser marcado. Reflexão forçada para mim nesse momento entrecruzado. - Um artista tem que entender o silêncio.

Cortejo.


Foto- Danielle Rosa
A energia toma conta do espaço e do público. Algo que não se pode mensurar, afinal, nas artes das cenas a presença e organicidade se fazem vivas no corpo e na hora! Segue o cortejo dos iniciados, a passos lentos, quase flutuados, numa cadência uníssona, quase hipnótica. Forma-se um corredor vivo por onde os transeuntes passam ao meio, só para depois, todos ocuparem seus espaços e lugares. Silêncio, calma/turbilhão, espera.


Hora de marcar.

Foto- Danielle Rosa
Olho no olho do transmutador com ferro em riste. Contato estabelecido. Tento ser só o cavalo para uma leitura de tantas possibilidades. Momento da ação. O ferro vermelho no peito/carne levanta uma fumaça branca e densa. Viro o rosto, fecho o olho mas volto e encarro o transmutador. Mais fumaça, viro novamente, a fumaça parece ordenada e coreografa uma dança na minha face obrigando a não fitar. Cessa a fumaça, marca feita, olhos direcionados ao ferreiro, agora, eles estão cheios de uma água que purifica aquele corpo performer em cena. Nesse momento, um mundo passa na mente e o tempo rompe uma fração mágica. O ferreiro continua a fitar e depois de um tempo sai para continuar sua missão.

Foto- Danielle Rosa
Volto a olhar a parceira na minha frente, minha linha de fuga, do outro lado da rua/corredor. O corpo marcado sente o peso, o chão de pedras irregulares, as conversas das pessoas ao lado, os flashes frenéticos dos passantes, a todo instante, registrando o momento ainda não codificado e suas indagações. Nesse trajeto, algumas pessoas pararam e religaram comigo, fitando e trocando energia. Uma moça branca, de cabelos enrolados na altura do ombro, me olhou por um tempo considerável. Seu olhar buscava algo no meu, insistia entender a minha dor ou que sentimento era aquele do cavalo. Ela colocou a mão no plexo solar como quem se despedisse e saiu com os olhos aguados. Após um tempo ela volta, para novamente frente a mim, dá um beijo no meu rosto e sai. – O artista deve dar e receber ao mesmo tempo.

Foto de  Óli de Castro
Link de vídeo feito por Victor Gally:

Nesse momento uma chuva fininha cai sobre os corpos marcados acalentando quase essa saída de feitura. Sensações ampliadas, desejos restaurados, vida pulsante.

Foto- Letícia Gomes
Ao longe sinto a luz do lampião que se aproxima. O cortejo caminha vagarosamente em transe e o corpo parado começa a tomar vida e caminhar para fazer parte do grupo. O que passa na cabeça de cada um ali marcado? Quais significados na sua trajetória corpo/vida/arte são remexidos e rememorados? Mera performance distanciada? Encenação? Espetáculo?! Cada um é afetado pelo o que se deixa ou pelo o que é formado?! – O artista não deve ter auto-controle sobre sua vida – O artista deve ter total auto-controle sobre seu trabalho.

Acaba a performance.

Foto- Victor Gally
O tempo não foi tão longo como pensei, senti passar rápido, talvez pelas conexões que estabeleci nessa trajetória e os contatos feitos. Não lastimo a dor do percurso, não fico reclamado dela ou das escolhas que fiz e faço no meu cotidiano e trajeto. Continuo.

Foto- Victor Gally
Nessa transmutação da carne refleti, entre outras coisas, sobre o papel da arte e dos artistas que estão perdidos em cidades e locais que expulsa-os, por não reconhecer neles e na cultura, potencias criadoras e de transformação local! Marina Abramovic ao vir ao Brasil escolheu oito artistas brasileiros para performar na sua exposição, mostrando a importância e necessidade de valorizarmos o que é nosso, afinal, arte, cultura e artistas se tem em todos os lugares, mas com tratamento e prioridades bem distintas!

Passe pela experiência, é o que sempre digo!

Mil teses ou dissertações, teorias ou divagações não seriam capazes de captar um milésimo da vivencia e potência de Transmutação da Carne, de Ayrson Heraclito.

Foto- Letícia Gomes
Por todas as questões tocadas de pertencimento, ancestralidade, escravidão, marcas, espaços, corpo cultural, o que me vem agora, tentando relatar sobre, é: Por que será que somos só ou mais valorizados e reconhecidos fora do nosso domicilio artístico?! Por que esta necessidade descontextualizada de uma arte/mídia/consumo?! Será que a Bahia/ Salvador/ Conquista/ Brazil sabem a força e o poder da sua arte e dos seus fazedores?! Algumas questões que não me saem da cabeça...

Volto para casa num ônibus calmo, numa São Paulo tranquila. Meu olhar parece desmiopado e tudo amplia as sensações. Não durmo. Quem atua ou performa sabe o que eu digo! Tento escrever algo e não consigo. Vejo as fotos e vídeos tirados pelos amigos e fico perplexo pela potência das imagens. O performer não encena, ele é o veículo! - O artista é o universo. – Um artista deve ter amigos que elevam seus espíritos.


Foto- Warley Almeida

Amanhece. 

Estou varado de fome e sem pestanejar vou num restaurante/bar e peço um prato comercial de bife. Como a carne prosaicamente lembrando uma Neusa Sueli, na cena final de Navalha na Carne, de Plínio Marcos e vou voltando a realidade, voltando a realidade, voltando a realidade... O atendente jovem e nordestino sorri, diz o preço da refeição e me chama de patrão. Brinco com o verbete foucaultiano e digo a ele que estamos no mesmo barco! Ele sorri, mais uma vez, só que com um brio diferente!

Saio do bar e a chuva cai novamente forçando a lembranças e memórias que ela, parceira de tantas fases, insiste em me marcar. Marcado pelo ferro, pelo fogo, pela chuva, pelo lugar, marcado pelo teatro! Marcas que levamos para sempre, boas, ruins, provisórias, permanentes, marcas!

Que nos transmutemos em arte, fogo e vida fazendo do tempo um aliado para perpetuar nossa existência e caminhos. Que a necessidade da arte seja diária, respeitada, valorizada e insubstituível! Axé Ayrson Heráclito e sua cuidadosa equipe baiana pelo trabalho e passagem. Axé Marina Abramovic bruxa sabática da performance. Axé ao Sesc por possibilitar  tudo isso! 

Laroyê aos caminhos que se abrem sempre! Andemos!

Foto- Acervo pessoal. O cavalo e o ferreiro

MB. São Paulo, 11 de março de 2015.

PS: Os trechos inspiradores em itálico são do "Manifesto sobre a vida 
do artista" de Marina Abramovic: 

Agradecimento especial aos amigos artistas que presentearam 
com suas presenças e registros fotográficos dessa linda memória ainda latente.

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