Nesta semana tive o prazer de
assistir ao espetáculo “Maria que Virou
Jonas ou A Força da Imaginação” da Cia Livre, na Oficina Cultural Oswald de
Andrade, em Sampa. A Oswald, como um eterno caso de amor antigo, insiste em
marcar meus momentos, seja na audição ou temporadas do premiado e marcante "ASSASSINATO DO ANÃO DO
CARALHO GRANDE", de Plínio Marcos, dirigido pelo querido Marco Antônio
Rodrigues, que me retornou a SP em 1997/1998, rebatizando-me no teatro real
e das possibilidades na metrópole, ou em cursos e oficinas que fiz por lá, além
de ser palco de uma outra audição mais recente para ingressar na Fábrica de Cultura, como artista educador de teatro. Muitas memórias vividas nestas salas e corredores
são ainda pulsantes em meus extratos, assim como o espetáculo que acabei de
ver!
Dirigido por Cibele Forjaz e
protagonizado por Lúcia Romano e Edgar Castro, Maria que Virou Jonas ou A Força da Imaginação é muito mais do que
se propõe! A peça está em cartaz em São Paulo desde o início desse ano, comemorando
os 15 anos da Cia Livre, com sua décima montagem! Estreou em fevereiro no Sesc
Belenzinho, seguindo para uma temporada no TUSP, de março a abril, arrancando
ótimas críticas e comentários!
Poderia começar a falar sobre o
texto, a encenação, os atores, pois há muito tempo não via um trabalho de
teatro, essencialmente potente e instigante: teatro como ele é! Assisti
recentemente Mistérios Gozosos do Teatro Oficina, que é um Desbunde aos
sentidos e acrescento Maria que virou
Jonas nessas sensações também, por várias razões.
A escolha da temática que circula
em torno de identidades, transexualidade, diversidade, além de forte, é urgente para a discussão em arte/vida! Por aí, a peça já ganharia notoriedade, mas
o conjunto da obra a faz mais que uma obra passageira ou panfletária!
O texto escrito por Cássio Pires,
se inspira na história do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592) no ensaio
Da Força da Imaginação, onde Marie vira Germain! Sim, é isto mesmo que você leu! Uma mulher ao se esforçar em saltar um buraco, desloca de seu interior um pênis escondido, ai começam as TRANS
forma AÇÕES! Não preciso contextualizar mais para termos uma sinopse/conflito bastante instigante
e atual! E não fica só nisso! A cenografia de Márcio Medina é um destaque à
parte, além das músicas de Lincoln Antônio (sim, os atores cantam e dão um show, com um músico gato e talentoso, ao vivo!) e da preparação vocal para o canto, feita nada menos, pela diva cigarra Ná Ozzetti ( que luxo!!). Tudo isso não seria nada sem a potência TRAN formaDORa dos atuadorxs, (é bom que se diga!!) que agrega a obra uma
qualidade pouco vista no teatro paulistano, recentemente!
Vejo em São Paulo muita gente que
faz teatro! Teatro Musical Comercial, teatro de grupo, performance que se diz teatro, grupo novos, cursos novos, atores jovens que buscam sobreviver fazendo “arte” e
brigam diariamente, por cada lei de incentivo ou edital; grupos antigos que exigem
exclusividade e atenção... No meio de tantos solilóquios e afetações não sucumbir
ao ego e aos guetos e conseguir realizar um trabalho bem feito e emaranhado no seu
discurso/corpo/arte é realmente, uma proeza para poucxs!
Em cena essxs guerreirxs cênicxs conseguem, naquela sala TRANSnformada que ensaiei por quase um ano, “o Anão”, num corre-corre
de 30 atuadorxs loucxs; fazer a mágica do bom teatro acontecer! Naqueles corpos o
discurso se faz presente! Visceralidade, potência, organicidade! A presença de ambxs é forte e num espaço pequeno, ficou ampliada pela atuação compartilhada com a plateia, a cada olhar de perto, em arena, (salve o teatro popular e de rua!) muito e necessariamente íntimo, como as confissões ou o meta teatro ali acontecendo. E quantas
imagens bonitas nos são presenteadas! Atenção para as sequências corporais e o
trabalho de corpo coordenado por Lu Favoreto, que nos dá sequências lindas, e certamente um outro espetáculo à parte, ali presente!
Tudo casa perfeitamente bem, além
da analogia de sensações que os atores criadores e a direção quiseram causar aos
expectadores com a escolha dos materiais usados em cena, desde a tabela de cor a variados formatos reincidentes, às temperaturas, fusões e sensações que nos
causam. “Fusão (física), um processo físico de transformação do estado da
matéria.” Filhos da mãe!!!
Nesse jogo que está mais para Judith Buter que para Viola Spolin, a plateia ativa/passiva ou versátil escolhe
quem faz quem, a cada dia de encenação. Assistimos neste dia a Neo Maria de Lúcia Romano e
Jonas Couto de Edgar Castro darem vida, a ela e ele, ou seria o contrário?!
Como é bom para mim que sou também, meu discurso arte/vida no corpo, carregando todas as cotas quase como um condensado de bose-einstein, diariamente, ter o privilégio de ver uma obra tão requintada! Ora, o teatro,
a dança, as artes da cena, do visual e do corpo, vivem de signos e imagens, ter
esse cuidado ao presentear ao público, é uma delícia de se comer e salivar, desde o cenário aos atores...
Olha vocês pensando em sacanagem, opaió?!
Tá pensando que travesti é bagunça?! Fora o bordão (des) contextualizado, infame e/ou oportuno, achar que a sexualidade e diferenças só giram em torno das/dos travestis de ruas, estereotipamente representados, há séculos, está muito enganadx! O universo da sexualidade e identidade de gênero está constantemente em ebulição, como o texto da peça que é navalhante, urgente e se faz necessário como
discurso ou educação para todxs, professores, atores, médicos, cristãos, ateus, héteros, gays, numa temática que não deveria ser velada, tampouco marginalizada, mas de urgente discussão!
Impossível não se ver ali,
recortadx naquele texto/discurso em situações reais e possíveis num
mundo louco, diverso, cruel e desigual.
Lembrei de novo, da querida
Claudia Wonder, pela musicalidade, força da peça e pela referência. Aos mais desinformadxs e para contextualizar este papo/texto/diverso, faz-se necessário saber um tiquim sobre Claudia Wonder. Vejam o documentário "Meu Amigo Claudia" de Dácio Pinheiro, 2013, [https://www.youtube.com/watch?v=159I5cQkbx4] onde a sipnose diz: “O
longa conta a história de Cláudia Wonder, uma eclética travesti que trabalhou
como atriz, cantora e performer nos anos 80, tendo feito muito barulho no
cenário underground de São Paulo. Ela também ficou marcada pelo importante
trabalho como ativista na luta pelos direitos homoafetivos.”
Antes de me derreter e modificar
meu corpo e essência, e será que a essência muda?! indico a todxs amigxs esta obra prima da dramaturgia atual! As duas horas sentado numa cadeira não tão confortável (queria um almofada forrada de plástico bolha ou em formatos e imagens sugestivas para me salvar) valeram a pena pelo (des) conforto ou júbilo que a peça pode causar. Como é bom perceber que ainda existem artistas que pensam na mensagem que levam seus
cavalos, além dos prêmios e editais que ganham! Maria que virou Jonas é a fusão que precisamos para TRAns formar uma sociedade preconceituosa e limitada, que ainda
aprende a lidar com o diferente, em pleno século XXI! A eterna diva Claúdia Wonder certamente estaria aplaudindo, de pé, este
trabalho, assim como eu o faço agora, veementemente, em fusão! Bravo! Evoé! Por um teatro de verdade e TRANS forma AÇÕES!
“Não faço teatro para o povo, mas
o faço em favor do povo. Faço teatro para incomodar os que estão sossegados. Só
para isso faço teatro. ” Plínio Marcos.
SERVIÇO
Corram Lolas, Corram!
A peça fica em cartaz até 17 de
dezembro na Oficina Cultural Oswald de Andrade
Rua Três Rios, 363 - Bom Retiro -
São Paulo - SP - Tel.: (11) 3222-2662
Terça (15), quarta (16) e quinta
(17), as 20h.
Ingressos distribuídos uma hora
antes. E é Grátis! Dá pra acreditar?!
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia | Cássio Pires
Direção | Cibele Forjaz Atores-criadores | Edgar Castro e Lúcia Romano Direção
de Movimento | Lu Favoreto Cenografia | Márcio Medina Figurinos | Fabio
Namatame Luz | Rafael Souza Lopes Operação de Luz | Rafael Souza Lopes e
Rodrigo Campos Direção Musical | Lincoln Antonio Sonoplastia | Pepê Mata
Machado Treinamento Vocal para Canto | Ná Ozzetti Produção | Cia. Livre e
Centro de Empreendimentos Artísticos Barca.
Duração: 120 minutos . Recomendação: 16 anos.
As fotos usadas nesta postagem são de divulgação do espetáculo e estão na página; [ https://www.facebook.com/espaco.casa.livre/?fref=ts]