Você
tem fome de quê?
Ensaio
Gastronômico social em dois atos
Por Marcelo Benigno*
Quando era pequeno, o que mais me estimulava a ir para a escola era a culinária de minha mãe. Ao sair do colégio, quase ao meio dia, com a barriga roncando, eu ficava imaginado que prato ela iria preparar para o almoço. Cada dia era uma surpresa diferente: cortado de abóbora com quiabo, arroz com açafrão, feijão verde temperado com coentro e cominho, salada de alface fresquinha, colhida ali na hora... Hum!
Não éramos ricos e nossa comida era simples, porém feita com muito amor e respeito, ingredientes fundamentais a qualquer refeição e atividade na vida, além, é claro, do carinho, segredos, temperos e alquimia da minha mãe, que condicionavam o sabor e a alegria de cada refeição.
Hoje, moro numa das Residências Universitárias da UFBA, em Salvador. Meus vizinhos mais próximos são seis ratazanas noturnas e várias baratas ninjas voadoras, que insistem em frequentar meu quarto, mesmo após o velório de duas de suas amigas, ontem à noite, perto da minha cama.
Aqui, a comida não é motivo para estímulo, muito pelo contrário.
Estou com uma enxaqueca horrível devido ao jantar de hoje que “não bateu legal.”
De um tempo para cá, a qualidade total, como dizem por aí, caiu vertiginosamente aqui na residência. Recentemente, o Restaurante Universitário, sediado aqui na Residência Um (R1), no Corredor da Vitória, em Salvador, foi fechado para reparos, devido aos estragos das chuvas.
Desde então, as refeições são feitas em cada residência, (que são três), proporcionando uma desorganização total, para residentes e funcionários.
E ninguém reclama do feijão cru do almoço ou da carne “verde” servida nesta semana! Num país onde uma maioria passa fome questionar a alimentação é algo intolerável, quase uma blasfêmia! E olha que somos cobertos por vários profissionais especializados que garantem a qualidade, cardápio e seleção da nossa alimentação fresquinha e nutritiva, diariamente!
Sem mencionar que somos constantemente cobrados por nossos rendimentos acadêmicos com uma alimentação que não nos estimula ou nutre suficientemente. Não vou entrar no mérito dessa questão, pois alimentação sadia e bem feita, (observe que não estou falando alimentação cara, sofisticada ou coisa parecida) é fundamental para o funcionamento e desenvolvimento das atividades físicas e mentais de cada um.
Muitos dos residentes, assim como eu, estudam o dia inteiro, num corre-corre diário. Alguns, devido às matérias obrigatórias de seus cursos, têm atividades físicas “puxadas”, que exigem pré-disposição e resistência, mas como?
Não sou desses que questionam por nada ou por causas obsoletas!
O problema é que se ninguém reclama, é porque não está incomodando!
Correto?!
Onde estão os futuros sociólogos, psicólogos, médicos, nutricionistas, pedagogos, advogados, artistas e afins dessa casa?!
Por que ninguém deixa de comer a sopa mal feita, que parece mais uma lavagem para porcos?! Será que eu que sou fresco demais ou ninguém percebe isso?
Aliás, parece que os residentes têm se tornado animais irracionais, que só agem por instinto, pois ao invés de lutar por uma causa de todos, já que vivemos e dividimos um espaço coletivo, preferem, às 9 horas da noite, lanchar no Mc Donald´s ou pagar por uma coxinha gordurosa e sadia ao rapaz do lanche, que religiosamente, passa na rua oferecendo seus serviços aos residentes famintos que se digladiam, por um salgado ou fritura, garantindo uma noite de sono tranqüilo, livre de pesadelos ou da insônia causados pela fome mal saciada do café – jantar, servido as 5:30h da tarde, na casa.
E assim vai se levando a vida na casa e na capital da alegria, entre uma alimentação de qualidade e sabor questionáveis, aos ratos e baratas constantes, que lembram metaforicamente a nossa situação decadente, às discussões sem propósitos e temperamentais, regradas pelo machismo típico de uma casa povoada exclusivamente, por homens-universitários, que certamente, contribuirão para a formação de nossa sociedade atual com todos seus genomas, estereótipos e dominações mais conhecidos e insistentes.
Dos Funcionários da casa? Dos Residentes? Da Superintendência Estudantil ou da UFBA?! (...)
E se não existissem as residências universitárias, quantas pessoas seriam prejudicadas?! Quantos empregos não existiriam?! Quanto de verba seria gasta com outros projetos mais importantes para a UFBA?! Somos os únicos a passar por problemas desse tipo?
O que está acontecendo, Magnífico Reitor?
A UFBA não se importa se comemos bem ou mal. Para ela, o importante são os números, os atendimentos que ela faz há tantos estudantes carentes que precisam estudar na capital.
Eu sempre fui um dos primeiros a assumir que sou um Residente Universitário, carente, pobre, caipira, filho de lavradores do interior da Bahia, mas com todo orgulho, dignidade e fé na minha cultura e história.
Nunca passei fome ou necessidade na vida!
Já venci a seca, a politicagem do interior, a falta de emprego, as más administrações públicas, mas nunca passei por uma situação como esta!
O que fizeram com a nossa dignidade, meu Deus?
Não estamos cuspindo no prato que comemos, mas exigindo respeito e dignidade para todos!
Falar de fora é fácil.Vem aqui e sinta na pele esta sensação!
Convivemos nessa casa, entre estudantes e funcionários boa parte da nossa graduação e parece que somos todos estranhos, fechados nos nossos mundinhos patéticos e egoístas.
Se não lutarmos por uma residência digna, estaremos sendo cúmplices de um processo de acomodação típico do povo brasileiro, intrínseco da mais comum forma de dominação, aquela que aliena psicologicamente e burocraticamente a todos.
Colegas, sejam os atores sociais do seu tempo! Não assistam a vida passar diante de vocês ou pela televisão! Assumam os palcos da vida!
Vivemos numa democracia e a opinião é pública, graças a Deus!!
É inquestionável o valor e a importância da Residência Universitária para a comunidade e para nós, que pessoalmente, usufruímos dela.
Mas uma coisa não tira o valor da outra! Esta residência já foi uma casa acolhedora, mas hoje está abandonada, e cada vez mais vai chegando gente, que vê, olha, senta, come, dorme, defeca, se acostuma, se acomoda e ainda consegue sorrir!
É a alegria típica de uma Bahia subdesenvolvida, de um Brasil Brasileiro turístico e comercial!
Relaxa, senão não encaixa!
Minha Cidade é linda demais!
Tenho fome de tudo!
Cultura, arte, lazer, dignidade, alimento...
Tenho saudade mesmo é da comida de minha mãe, da minha família, da minha alegria, do meu emprego, que não posso ter aqui, estudando em dois turnos, da minha cidadania perdida na capital...
E quanto a vocês, amigos residentes, continuarão como porcos comendo sua lavagem cerebral costumeira? Já se acostumaram com os ratos e baratas insistentes?!
Eu vou dormir, pois o único ovo cozido, que comi no jantar, e que não me fez bem, insiste em ficar no meu estômago mesmo vomitando–o pela terceira vez.
Mas ele vai sair!
Até os porcos vomitam, porque eu não?!
Amanhã será um novo dia!
O segundo ato poderá ser feito por vocês!
Boa digestão a todos!
Por hoje é só, pessoal!
Salvador, 13 de abril de 2005, às 11:30 da noite.
* Marcelo Benigno é ator, arte-educador, diretor teatral, graduando em Artes Cênicas- Licenciatura, pela UFBA, Residente Universitário da R1, no Corredor da Vitória, em Salvador.
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