POR QUE EU DANÇO?!
EVOCANDO A FORÇA DA PRIMAVERA- NASCER E MORRER EM OSTARA
Uma apologia as políticas públicas para a arte, cultura e formação
de platéia na Bahia
Tive a oportunidade de
acompanhar de perto a temporada do Espetáculo Ostara- Primaveras em Sagração,
dos alunos dos cursos de Licenciatura em Dança e Teatro da Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia- UESB- JEQUIÉ, dirigido pelo professor e
coreógrafo conquistense Aroldo Fernandes. O trabalho estreou na cidade de
origem com uma calorosa resposta da platéia e foi selecionado, através de
edital público, para compor a programação do Projeto Quarta que Dança,
promovido pela Fundação Cultural do Estado da Bahia. Tal projeto completou em
2013, 15 anos de produções e espetáculos de dança em Salvador, inicialmente
abrigado no Teatro do Spaço Xisto Bahia e só, recentemente, saindo de lá dando
abertura a outros tipos de dança, espaços, cidades e formatos. Um dos objetivos
do Projeto é contribuir para a difusão e visibilidade da produção atual da
dança na Bahia e por conseguinte, a formação de platéia para a dança. Mas será
que depois de 15 anos, e nesse novo formato, tem conseguido?!
Antes que este texto
vire um texto manifesto sobre o que é realmente uma política de formação de
platéia ou de interiorização- é o
temo que eles usam para dizer que a cultura e verbas estão indo para o interior
do estado- e ainda mais com a notícia do cancelamento do Quarta que Dança e de
outros por uma ordem do senhor Rei Governador : “A medida se deve aos Decretos nºs 14.682 e 14.710/2013, que
determina o contingenciamento no orçamento das secretarias e órgãos estaduais e
estabelece medidas para a gestão de despesas e custeio, respectivamente”,
gostaria de falar do espetáculo e tentar responder a questão que intitula estas
linhas.
De inicio preciso falar
de Aroldo Fernandes, o coreógrafo, que através de seu trabalho extremamente
cuidadoso e de um requinte visível em toda sua dramaturgia, consegue montar uma
obra inspirada na Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky, numa data
comemorativa de 100 anos de sua primeira execução pública, com estudantes em
formação e no sertão jequiéense, com um rigor invejável! Só por este fato o
trabalho tem um mérito importante e revela a forma de como ele, artista,
coreografo, pesquisador e professor vê sua arte dentro e fora do seu habitat.
Os mais sisudos da capital certamente falariam: Nossa, montar a Sagração da
Primavera, um texto tão clássico e complexo, com meninos do interior?! E porque
não? Só se monta no interior espetáculos populares? Qual a diferença do artista
e profissional das artes da cena, que mora e produz no interior, para os
artistas das capitais?!
PRA QUEM EU DANÇO?!
Aroldo já tinha
participado do Projeto Quarta que Dança, em 2003, em Salvador, com o lindo
trabalho “Cartas de Amor” junto com bailarina e também pesquisadora Iara
Cerqueira e muito desse seu cuidado em coreografar e produzir se reflete neste
trabalho na UESB, que junto a esse elenco de intérpretes criadores consegue
criar um trabalho solfejado por um ritual sabbático, dentro da obra da
Sagração.
Seqüências circulares
representam estágios de vida e morte e desenham figuras e pentagramas no
espaço, símbolos fortes e presentes nas cerimônias primaveris. O vigor das
seqüências e a atuação de um elenco bastante uníssono transpõe para a cena uma
energia contagiante. O coreógrafo e sua equipe teve um cuidado especial com a
estética e visual do trabalho, desde o figurino- destaque para os plásticos
bolhas usados em grandes saias; à belíssima maquiagem- tatuagem- corporal que
lembra as tatuagens de casamento indianos tão feminina e portadora de bons
presságios. O cenário transformou o palco com folhas de eucalipto-doce de onde
o cheiro exalava com os movimentos rápidos dos intérpretes. Galhos, troncos,
mastros, nada é colocado sem significado num trabalho onde o signo é uma quase
oferenda a deusa mãe.
As coreografias são
fortes e a presença dos intérpretes também, destaque para Cinara Abreu que
representa uma espécie de sacerdotisa - mãe - Gaia e dá as nuances de mudanças
no trabalho, seguida da presença também marcante, dos dançarinos intérpretes
Thiana Barbosa, Maéli de Marcos, Samara
Martins e Pyter Rodrigues. No elenco composto de seis homens e onze mulheres,
literalmente neste ritual feminino os homens não têm vez, transferindo o foco
necessário para a presença que vem do ventre, nesta dança ritual fertilizada.
Só por esses detalhes o trabalho já seria bom, mas para marcar o final,
milhares de imagens invadem e cobrem do palco ao corpo dos dançarinos,
projetadas em toda sua extensão.
Em Salvador, no teatro do
Centro Cultural Plataforma, neste momento a platéia que insistia em conversar
desde o inicio da sessão, calou-se, maravilhada.
POR QUE EU DANÇO?
Mas para que tanto
requinte, pesquisa e zelo levados sem nenhum tipo de preparação num projeto que
pretende ser um importante meio de difusão da produção atual da dança na Bahia
e de formação de plateia? Formar plateia e difundir a dança não é somente abrir um teatro e chamar o povo da rua
para ver um espetáculo de graça, sem nenhum tipo de preparação anterior. Em
Plataforma, por exemplo, o barulho do público presente foi tão grande e
desagradável que incomodou a todos. Eu,
já parei meus espetáculos em Conquista, por muito menos e fiquei extremamente
incomodado! Isto é formação de platéia?! Agora pensem comigo, na concepção
inicial desse trabalho, as dançarinas intérpretes dançaram, em Jequié, de peito
desnudo, e nada demais aconteceu, imagine se isso tivesse acontecido na
Plataforma?! No TCA, em 2005, um elenco de dez dançarinos negros dançou nu “O
Samba do Crioulo Doido”, de Luiz de Abreu, no Ateliê de Coreógrafos
Brasileiros.
PRA QUEM EU DANÇO?!
Numa obra toda
decodificada como Ostara, merecia-se, no mínimo, já que não é uma platéia do
TCA e tão pouco do Xisto Bahia, de onde o projeto migrou, uma contextualização
ou uma apresentação no inicio, avisando a plateia em formação, do que se tratava
o trabalho, e relembrando a educação em espaços de espetáculos. Engraçado, fazemos isso quando se precisa em
projetos similares no interior... Ai fico
me perguntando, mais uma vez, será que não foi intencional colocar o grupo do interior na periferia de Salvador sem nenhum tipo de
preparo e a notória falta de formação de plateia?! Duplo preconceito?! Pausa
reflexiva.
O Teatro do Centro Cultural Plataforma
é bem equipado, arrumado embora os técnicos soassem bastantes ríspidos em alguns
momentos. Fico pensando, macaco velho de Festivais e palcos do Brasil por quê,
no nosso estado, somos tão maltratados e subjugados?!
Apesar de tudo isso, de
muitas falhas na produção, (o elenco sequer teve os programas do projeto para
comprovar sua atuação, pois os mesmos acabaram antes de chegar) o trabalho se
manteve intacto e forte.
O elenco segurou com garra uma plateia difícil e mal
educada e brilhou, mostrando mais uma vez a força do artista e pesquisador do
interior.
Ostara iria percorrer
mais três cidades da Bahia, atingindo com isso outros territórios de identidade
do estado, sendo que a maioria dos contemplados neste projeto preferiram ficar
na capital. Pausa de novidade.
Hoje, a classe
artística de Salvador, que diz representar toda a Bahia, diante dos cortes em
vários projetos e editais, tenta se reunir para tentar alguma reivindicação
conjunta. Se for como os últimos dois Festivais de Teatro que aconteceram
recentemente na capital baiana, onde sequer verificou a presença de nenhum
grupo do interior do estado, (então são Festivais só de Salvador e não da Bahia
inteira e seus 417 municípios como dizem) os artistas do interior estarão
“lascados” como se diz no bom verbete popular local.
To cansado de ficar
toda hora mostrando aos novos gestores, produtores, pseudo artistas descolados
e modernos das capitais, políticos e afins, que existimos, que temos uma
história de luta, trabalho e resistência como artistas interioranos. Pesquisando sobre a formação do artista do
interior através da experiência do Grupo Caçuá de Teatro de Vitória da
Conquista, que completou 15 anos agora em 2013, num mestrado feito fora do
estado pude reconhecer e valorizar ainda mais o meu trabalho!
Ficar nesse gueto
soteropolitano onde a política partidária, colonizadora quer mandar ou manda
nos artistas locais é extremante desgastante e não combina com o meu perfil.
O interior ganha com
espetáculos como Ostara, com pesquisas e trabalho em arte de seus filhos
interioranos, que infelizmente, e muitas vezes, são obrigados a migrar para
outras capitais, buscando espaços, reconhecimento, respeito e trabalho. Um exemplo disso foi o convite da College of Southern Nevada
feito ao coreógrafo Aroldo Fernandes, através de suas estadas fora do país,
para levar um grupo de sete alunos da UESB, do curso de Licenciatura em Dança,
para participar do "Las
Vegas Dance in the Desert Festival" neste semestre, onde ministrariam
oficinas e fariam a apresentação de três coreografias do repertório do grupo
baiano. Ironicamente também era o aniversário de 15 anos do Festival de lá.
Apesar do reconhecimento pelo trabalho de Aroldo e de como esta viagem seria
importante para o grupo, e para a difusão
da produção atual de dança na Bahia, a viagem embargou na falta de apoio
local e estadual.
POR QUE EU DANÇO?!
Se em Salvador as
verbas e apoios para a cultura e arte estão restritos e boicotados, em Vitória
da Conquista, que também há exatos 15 anos, justamente por uma política
partidária ineficiente e excludente na área cultural, se anula de fazer algo
pela cultura, arte e artistas locais. São 15 anos, minha gente, e memória não
se apaga ou se esquece assim: vive-se!
POR QUE EU DANÇO?!
Meu evoé e admiração ao
elenco e equipe de Ostara- Primaveras em
Sagração, nesse trabalho lindo, que não deixa nada a desejar a nenhum
trabalho de capital, e olha que eu ando e vejo muita coisa por ai... Parabéns a
Aroldo pela perspicácia e paciência, pois peço a Dionísio, diariamente, que
renove a minha, pois do jeito que a cultura e arte andam por estas bandas
baianas, migrar novamente será o destino mais provável para esse sátiro
catingueiro cansado de guerra e da desvalorização da arte e artistas no
interior.
E como em Ostara coloco
todos esses preconceituosos, preguiçosos, ensaletados de plantão (que ficam em suas
salinhas ditando regras não experienciadas pela cultura e arte), com
comparações e oportunidades desiguais que atravancam os caminhos e o andamento do trabalho do
artista das cenas na Bahia, sobretudo no interior, dentro dessa
roda de fertilidade e energia, e nela, peço somente uma coisa: Tudo o que
fizeres aqui voltaras para você três, voltará para você três vezes, voltará
para você três vezes...
Salve a deusa!
Dignidade, respeito e
valorização ao artista do interior.
POR QUE EU DANÇO?!
Para mudar esta situação,
pois se não o fizer, literalmente sou eu quem “danço”!
Para os 15 anos do
Caçuá!
Quem quiser acompanhar
mais sobre o MOVAI:
As fotos usadas nesta publicação são de Patrícia Carmo.
Cartaz do espetáculo para estreia no Engenho de Composição, em Jequié. Design de André Bomfim, sobre foto de Érica Daniela.
Marcelo Benigno é ator,
arte educador, professor de teatro, diretor do Grupo Caçuá de Teatro, em Vitória
da Conquista- BA, idealizador do MOVAI- Movimento de Valorização do Artista do
Interior.
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