TERRA À VISTA!
Em tempos de naufrágios e maresia PLUFT, de Susan Kalik, é a nova revelação do teatro soteropolitano.
Numa noite tranqüila e nada nebulosa a minha rota foi assistir a montagem de formatura da diretora Susan Kalik, graduada pela Ufba em Artes Cênicas/direção teatral.
Á princípio cansado de guerra e de rotas antigas e previsíveis neste mar, e sem bússola a bordo, pensei que estaria diante de mais uma viagem que me levaria ao mesmo lugar de sempre. Mas macacos me mordam, repentinamente o vento muda, direcionando-me a uma bela surpresa! Susan foi ousada e corajosa ao escolher para sua formatura o texto de Maria Clara Machado, Pluft o Fantasminha, um texto de teatro infantil, encenado pela primeira vez em 1955, no Rio de Janeiro. Oras bolas será possível fazer teatro infantil na Escola de Teatro?! Para alguns pode ser inusitada a escolha e casual para mim: ora o teatro infantil não é teatro?!
Quando entramos na Escola de Teatro como alunos e já trabalhamos na área com as nossas escolhas estéticas e ideológicas formadas fica mais fácil aliar a prática à teoria acadêmica, que a meu ver ainda é o grande desafio do ensino, unir a teoria à prática, ou vice-versa, favorecendo ambas na construção da aprendizagem, e, por conseguinte, do produto, do resultado, do conhecimento. Assim fazendo uma escolha por um teatro legitimamente brasileiro, destinado à formação de um público infantil, a montagem de Susan surpreende em vários aspectos.
Logo de início uma produção muito caprichada e de um bom gosto (contextualizado)!
A diretora e sua equipe se esmeraram em trazer para o público infantil e adulto o gosto de suspiro e maria mole na boca. A platéia nesta noite era formada por crianças e adultos e as crianças deixaram a apresentação noturna mais pitoresca e deliciosa, com interferências e comentários durante a apresentação para lá de autênticos! As crianças têm esta sabedoria e espontaneidade e falam mesmo, com toda sua sinceridade infantil, se gostam de algo ou não, são verdadeiras ao extremo! Nós adultos é que vamos perdendo ou camuflando esta qualidade, da sinceridade e verdade, cobertos pela luta diária em tempos tão difíceis e de tantas máscaras fora da cena.
Acredito que a força da encenação de Kalif se dá por que toca em aspectos que considero primordiais para o trabalho do teatro: a poesia e a mensagem e o trabalho de teatro de grupo. Ela conseguiu formar uma equipe dedicada, desde os orientadores acadêmicos sensíveis, a um grupo com um talento colaborativo e uma vocação ao trabalho, bastante incomum em Salvador. Ao começar pelo ator e também produtor, Francisco Xavier, que há exatos 11 anos participava do Grupo de Teatro da UESB, em Vitória da Conquista, hoje Grupo Caçuá de Teatro, a qual coordenava e coordeno.
Assim como eu, Chico mudou seu rumo para mares da capitá, deixando o vento sudoeste de Conquista para ampliar seus horizontes e experiências noutros mares desconhecidos, com muito trabalho (e calos nas mãos). Mesmo assim conseguimos chegar num porto e usar todo o aprendizado adquirido, ao longo de muitas tempestades, mar revolto e rum, na vida e na arte!
No interior do Estado o teatro de grupo, o processo colaborativo de trabalho, a polivalência de habilidades e vocações e o engajamento político tornam os grupos interioranos fortes em trabalho e pesquisa, embora nem sempre esses fatos e dados cheguem ao conhecimento de todos.
Em PLUFT temos alguns exemplos desta colaboração como o de Sérgio Teles, ator e cenógrafo da montagem que mostra uma faceta menos conhecida nos palcos soteropolitanos, com a cenografia impecável e a interpretação cartunesca do Perna de Pau, Pirata Mor, com perna de pau de verdade (como ele consegue? - todos perguntam!). Ambas construções dignas de prêmios!
Mas não pára por ai!! O elenco é tarimbado e conta com presença irretocável da atriz e professora da Escola de Teatro, Ângela Reis, em iluminada participação.
Achei de uma delicadeza imensa a participação de uma professora numa montagem da Escola, refletindo, nas idéias do mestre Paulo Freire, como todos nós aprendemos juntos, sendo professores e alunos na arte e na vida.
A trupe está em boa forma, dos três marinheiros piratas, numa referência nítida aos três patetas clownescos do universo cartoon da diretora, à construção do tio Gerúndio e Pluft, este último menos infantilóide como costumam fazê-lo.
Há muitos pontos positivos na obra, como o figurino romântico e bem executado de Renata Cardoso, também professora da Escola; ao cenário que se transforma no barco do Capitão Bonança, num efeito do novo palco Giratório da Escola, simplesmente emocionante para um ex aluno que não teve palco para atuar durante toda sua graduação; além do quadro no navio em homenagem ao professor e mestre Harildo Deda (que dirigiu brilhantemente o recente Quando as Máquinas Param de Plínio Marcos, também no Martins Gonçalves).
Ah, não posso deixar de falar da cena em que Ângela, como Mamãe Fantasma dá um show, com sua canção tema, composta por Daniel Marques e Luciano Bahia, com direito a coreografia e tudo, tirando calorosos aplausos da platéia!
Inevitavelmente há alguns atropelos de estréia, como ajustes de tempo e pausas no andamento da peça, desafinações na música, como na cena de Maribel, e na iluminação, que deverão ser sanados ao decorrer desta temporada e outras que certamente virão!
Fiquei feliz ao ver Pluft e pensar na nossa inocência e infância que foram tão importantes para a nossa construção como pessoas, artistas, educadores...
Quando acreditamos em algo devemos investir com toda força e coragem que temos! Susan se joga como criança sem medo de errar e consegue um resultado surpreendente neste jogo teatral. Quem sai ganhando é o publico soteropolitano carente de espetáculos infantis de qualidade, mais comum com produções que comercializam a inocência dos nossos pequenos ou os bestificam. Teatro infantil é extremante difícil de ser feito, parece o contrário, mas não é!
Que a Escola de Teatro nesta nova fase contemple as tantas Marias Clara Machado, Araújos, Boais, com vertigem ou fóruns espalhados pelo nosso Brasil, de teatro essencialmente possível, brasileiro, nordestino, interiorano, periférico, mirando no trabalho colaborativo e de grupo, amador ou profissional, realista ou simbolista, erudito e popular, adulto ou infantil.
E que esta Susan cause, assim como a outra, a cantora estrangeira dita fora dos padrões, uma quebra de paradigmas mostrando tantas outras possibilidades de trabalho e construção para a nossa arte, nossa vida e nossos valores.
Vida longa a Pluft!
E que receba muitos prêmios por aqui, afinal, navegar é preciso e tem que ter muita coragem ao abrir o pano e o coração!
Valei-me Bom Jesus dos Navegantes!
Evoé, Odoiá!!
Salvador, 23 de agosto de 2009.
Marcelo Benigno é ator, arte-educador, diretor do Grupo Caçuá de Teatro, professor de Teatro, membro do Conselho Fiscal do SATED-BA.
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