O SONHO
Às vezes, acho que os sonhos, quando nos transposta para o seu mundo, nos enlouquecem. Talvez Morfheu não queira companhia na sua casa e nem compartilhar dos seus sonhos conosco, pobres mortais dorminhocos.
Achamos na nossa doce ilusão de sonhador, que um dia, eles se realizarão como mágica que solta no ar seus encantos coloridos, dignos de um desenho de Walt Disney, caindo lentamente no solo da nossa credulidade.
Por sonhos, muitos morrem ao defender o seu ideal.
Sonham tanto que perdem a noção do perigo, tornando-se heróis de seu tempo, semi deuses de suas causas e de sonhos que tornam-se coletivos.
Sonhar por dias melhores, como diz a frase clichê, pode ser visto de duas formas.
Os pessimistas, aqueles que nunca sonham, e que colocam mau agouro nos sonhos coloridos, apresentarão gráficos de desenvolvimento na área pretendida e informarão, aos sonhadores desinformados, que as possibilidades de concreção do seu sonho, são mínimas, ou melhor, inexistentes.
Já os otimistas, eternos sonhadores, apontarão alternativas criativas para contrapor com os resultados apresentados pelos amigos pessimistas, e defenderão o seu ideal até perderem sua última gota de sangue e esperança.
Os políticos, visionários, jurídicos e afins, certamente entrarão em cena para garantir este embate, proporcionando, tanto para os pessimistas quanto para os otimistas, possibilidades de ganhos. Lamentavelmente, eles usarão de toda sua lábia peçonhenta para iludir ambos os lados. Afinal, eles vivem disso e não iriam perder esta oportunidade.
Política, como dizem, só traz dor de cabeça e isso me faz lembra de outra história...
DURVALINA
Durvalina era Filha de Calú e Vitô. Calú, era a rezadeira mais famosa e conhecida da região. Ela era uma negra velha de cabelos muitos alvos, sempre amarrados cuidadosamente, fazendo uma poupa atrás da cabeça. Vitô, seu marido, era cego. Era um senhor branco e bonito, que sempre andava impecável no seu traje de malandro carioca ou malandro baiano capoeirista, com seu terno claro e chapéu panamá.
Quando Calú e Vitô iam à cidade, tirar o dinheiro da aposentadoria, eu pequeno, ficava no eitão da casa, esperando eles voltarem. Calú andava de modo engraçado, meio escadeirada pela idade, lembrando a moura torta da história infantil. Ela sempre gritava com Vitô e de longe, ouvia seus gritos estridentes.Talvez porque Vitô andasse devagar demais, não acompanhando seu ritmo, devido a sua cegueira.
Uma vez, Calú salvou a minha vida.
Após a refeição, enquanto todos se retiravam da mesa, eu e minha tia, esperávamos a área ficar limpa. Sem ninguém por perto, subimos no fogão à lenha e nos deliciamos com o caldo saboroso, restante da carne, ou seja, o óleo, na qual ela foi frita.
Uma delícia!
Minha tia, que já morava na Bahia e que era acostumada com os temperos e comidas baianas, nada teve. Eu, no entanto, quase passei dessa para a melhor.
Minha cabeça doía tanto que quase tive uma convulsão. Como não dava tempo de ir para a cidade, me levaram à casa de Calú.
Era uma casa pequena e escura.
Lembro-me dos detalhes, da cor do entardecer, da aflição de minha tia e minha vó, do quadro religioso “Coração de Jesus” na parede, e de Calú, rancando ramos de fedegoso para mim rezar.
Ela me rezou, passando os ramos de fedegoso pelo meu corpo e dizendo palavras rápidas, quase balbuceando-as, para em seguida, tirar o seu diagnóstico. Na mesma hora, ela dirigiu-se à cozinha, queimando rapidamente, um chifre de boi, que tirara dos caibros que seguravam as telhas, raspando aquela borra queimada e fervendo-a num chá. O cheiro do chifre queimando fazia que eu arrotasse. Ali mesmo, eu bebi aquele chá mágico e em poucos segundos, vomitei todo o caldo gostoso do meio dia. Segundo Calú, se eu tivesse demorado mais, com aquilo no estômago, certamente, teria morrido.
Desse dia em diante, fiquei com uma seqüela daquele acontecimento, talvez para que eu nunca me esquecesse de Calú e dessa memória.
Toda vez que como algo muito condimentado, gorduroso, ou misturo demais os sabores, a cabeça começa a doer, como martelo responsório. A dor é intensa, acompanhada com uma fadiga mortal. É a pior coisa do mundo.
Só consigo melhorar quando tomo o bendito chá de Calú, e ponho para fora o que me causou tal infortúnio. Na falta de chifre para queimar e fazer o chá, uso sementes de umburana macho, sempre em números impares, com algumas raspas de noz moscada. É batata! Só que essa receita, não foi dada por Calú, mas por minha vó.
É o que me tem salvado, aqui na capital e por onde eu vou, nesses tempos atuais.
Durvalina era filha de Calú!
Ela era uma jovem senhora de cabelos sempre trançados ou escondidos num lenço roxo. Usava saias rodadas verdes e vermelhas. Parecia uma cigana!
Certamente, ela herdara a mediunidade da mãe, corrija-se, não era mediunidade. Falar que uma rezadeira era médium, soava ofensivo, fazendo referências ao candomblé ou a macumba, feitiço, oferendas a orixás, ferindo a moral católica da região.
Elas eram então, rezadeiras abençoadas pela Igreja.
Talvez por esse medo, Durvalina, renegava o dom deixado pela mãe e a continuação de uma tradição popular, que era passada de pai para filho, de mãe para filha. Durvalina, não queria ser a nova rezadeira da região, reprimindo de todas as formas, tal possibilidade.
Só que ninguém pode correr contra o seu destino!
Como numa fase lunar, Durvalina tinha certos comportamentos. Havia época que ela se arrumava toda, principalmente, se bebia umas cachacinhas antes.
Ela saia pela estrada, de cabelos soltos e pés descalços, cumprimentando a todos, sorridente e feliz. Ela era comadre de minha madrinha e passava lá, de vez em quando, para prosear e tomar umas pinguinhas, na venda de meu avô. Seu tom de voz era tão estridente e rápido, que mal dava para entender o que dizia.
Quando ela apontava na estrada se ouvia logo dizer:
- Lá vem Durvalina!
E ela passava, dando boa tarde a todos, ou simplesmente “Boa!”, como se fala na região, até hoje, acenando e andando rápido, quase numa marcha saltitante de adolescente moça, ao receber o primeiro beijo de amor.
Outras vezes, Durvalina era triste, quieta e estranha. Não saia à rua e quando o fazia, era calada, vestida com trajes escuros, roxos ou pretos, com mangas longas e golas altas. Seu cabelo ficava preso, trançado como índia potiraguá, escondido atrás das orelhas. Era visível também, as olheiras profundas que marcavam seu rosto.
Depois deste momento, ela saia de casa, em direção ao açude, que ficava no fim do povoado. Ela enchia, a sua casa de água, dividindo-a em vários vasilhames, espalhados pela sala, cozinha e quintal, em panelas, pratos, copos, bacias de alumínio e esmalte e em sacos transparentes de plásticos. Parecia que estava chovendo dentro da casa, ou que o telhado estava repleto de goteiras.
Uma vez, eu a vi, passando em frente à casa de meu avô, vestida com a sua saia verde escuro e com as mãos cheias de sacos de plásticos transparentes, repletos de água. Ela estava com os cabelos soltos e parecia que conversava só.
Sua figura me impressiona, até hoje.
Recentemente, estive na casa de meus avós e perguntei por ela. Soube que há muitos anos, ela se mudara para São Paulo, destino de muitos baianos sertanejos e conterrâneos catingueiros daquela região, que saem em busca de uma vida melhor nas grandes capitais. Ela foi morar com os filhos, que já tinham ido, há algum tempo, para a capital paulista. Foi uma decisão rápida, que deixaria para trás, um passado de memórias reais, escritas nas estradas, no sofrimento, na falta de água, nas alegrias e nas lembranças dos antigos amigos, cúmplices de suas histórias.
Da casa do meu avô vejo sua antiga morada e imagino-a dançando descalça, com sua saia rodada e seus cabelos soltos, na sala repleta de água.
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