Havia uma pedra no meio do casulo- Mãos Trêmulas eclode em poesia num espetáculo sobre pessoas comuns como eu e você.
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
O conhecido poema de Drummond sintetiza o espetáculo Mãos Trêmulas
com dramaturgia de Victor Nóvoa e direção de Yara de Novaes que encerrou sua temporada
no Teatro Sérgio Cardoso em São Paulo, no dia 10 de agosto desse ano.
A primeira interpretação do poema, a ”pedra” pode
significar obstáculos, dificuldades, os problemas que podem impedir das pessoas
avançar na vida, ou que transmitem uma sensação de cansaço por parte do poeta, ficando sempre na memória de retinas fatigadas
e vividas tal impressão.
Na nossa memória diante da fruição de Mãos Tremulas
fica o registro de um acontecimento teatral de uma poesia e lirismos tocantes
por motivos que não são óbvios.
A dramaturgia premiada de Victor Nóvoa já vem pronta. Mãos
Trêmulas foi premiada pela II edição do Prêmio Dramaturgias Em Processo
do TUSP, e também foi contemplado na 15ª Edição do Prêmio Zé Renato da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo que possibilita
a produção e circulação de espetáculos teatrais desenvolvidos por núcleos
artísticos de grupos de teatro e pequenos e médios produtores.
Voltando a dramaturgia, nela, estão as indicações de quase
tudo para uma excelente encenação. Nóvoa
brinca com suas memórias com as palavras ditas pelas bocas das personagens e
lampejos do imaginário popular seu e de tantos outros, pois respinga no público
como em mim e no meu Entre a Cruz, a Espada e a Estrada, que vi também possível
para acontecer nessa capital paulistana que tanto segrega. No texto, ainda há
indicações para o figurino, objetos de cena, músicas que permitem que a peça teatral
passeie pelos elementos do teatro de forma natural, sem firulas ou efeitos pirotécnicos
para chamar a atenção e isso a encenadora Yara de Novaes foi sábia ao perceber
e explorar na encenação. Um texto teatral quando é completo apresenta as nuances
prontas facilitando a vida da direção.
Nessa encenação, Yara optou pela singeleza! O lindo figurino
de Fabio Namatame junto ao cenário de André Cortez compõe esse casulo borboletador
em tons de ocre que é super bem utilizado durante a encenação. Parecia A
mais forte de Strindberg
onde em Festivais de Teatro das antigas víamos frequentemente por ser um trabalho
“enxuto” e de boa produção para viajar. Aliás, Mãos Tremulas é um teatro das
antigas, pois conserva uma simplicidade técnica de falar óbvio da trindade: texto, atuação e direção, o que tem se perdido
na contemporaneidade, sobretudo, em São Paulo com tantas produções em cartaz
com intuito mais comerciais que artísticos ou o de comunicar uma mensagem
transformadora ao expectador.
Mãos Trêmulas avança ao expor em cena a relação de dois personagens
idosos. Idosos, velhos, borocoxôs, maduros, longevos, ancestrais, da terceira
idade? Embora a sinopse explorada noutras temporadas aponta que a peça reflete
sobre pessoas descartadas pelo mercado de trabalho, e que seguem com
perspectivas financeiras e desejos e, juntos, criam estratégias para não serem
despejados ou ainda, sobre o etarismo de pessoas periféricas frente ao capitalismo,
etc, a encenação toca num ponto primordial que a primeira
cena deixa evidente: NOS OLHEM!!
Há pouco tempo na Bahia, junto ao Caçuá de Teatro, estivemos numa
visita a uma casa de acolhimento para idosos. A primeira ideia que se pensa é de
tristeza, morte, definhação, mas é o contrário, eles estão lá, vivos, alegres, tornando
seu corpo memoria vivo! Temos uma visão tão equivocada da velhice! Na cultura
popular a sabedoria dos mais velhos é referência, e esses corpos estão vivos, potentes,
se divertem, até cozinham, ré-fazem e cozinham memórias num ato ação de
suas trajetórias, cantam, bebem, dançam e transam. Nossa, ainda é tabu falar de sexo na terceira
idade em pleno século XXI? Como se diz na Bahia: me deixe, vu, e me bata
uma garapa! A cena é tão poética que parece um jogo de clowns, talvez vindo das
vivencias do dramaturgo palhaço, que me lembra outro saudoso palhaço no seu linguajar,
com quem tive o prazer de trabalhar na encenação do “Assassinato do Anão...", 1997-98,
que também passou pelos palcos do Sérgio Cardoso, a sua benção, Plinio Marcos.
Ficaria horas falando dessa encenação e dos protagonistas divos,
Cleide Queiroz e Plinio Soares. Essa encenação só é o que é, em grande parte,
por causa desses dois artistas!
Pense nesse texto feito por atores jovens, não rola! Ou por atores mal resolvidos com seu corpo e idade? Ou por atores sem vivência que o texto aponta, também não! Aquele “tu” proferido no texto revela muito. A diva Cleide dá um banho de entrega junto com Plinio que carinhosamente a abraça de corpo e alma. Plinio é carinhoso por demais e muitas vezes abre os caminhos para sua parceira. Tu já viu numa relação entre homem e mulher quem é que manda? As cenas dos abraços, do soltar dos cabelos e a Dança das mãos trêmulas que ainda dançam é espetáculo a parte dentro da obra.
Hoje, 13/08/2023, às 19 horas, a peça estará em cartaz na Mostra de Teatro Heliópolis
e ainda dá tempo para correr e ver esse acontecimento teatral que espero ganhar
mais prêmios e temporadas nesse ano, assim como o filme: Tudo
em Todo Lugar ao Mesmo Tempo que foi o grande destaque do Oscar 2023 e
levou sete dos 11 prêmios em que concorria — incluindo o de Melhor Filme. A história
se baseia na premissa do multiverso e da possibilidade de saltar entre uma
realidade paralela e outra. Os atores
veteranos e por que não dizer velhos, idosos, borocoxôs, da terceira idade: Ke Huy Quan, Jamie Lee Curtis, Michelle
Yeoh levaram as estatuetas por suas atuações.
Assim como o filme superpremiado no Oscar e a peça Mãos Trêmulas
no nosso Brasil Tupiniquim, onde suas cenas finais se correlacionam, que possamos
extrapolar o multiverso criando outras realidades para pessoas que já viveram
um pouco mais que nós e que ainda estão potentes, vivas, inteiras e felizes
nessa encenação da realidade que podemos chamar de vida! A pedra do meio no
caminho não é o que parece! O envelhecimento é um processo natural, que merece respeito, dignidade e condições para eclodir, renascendo, sobrevivendo! Sons do mar! Odoyá, A ancestral não sai de cena um
só momento! Saluba Nanã!
As fotos usadas nessa postagem são de Noelia Nájera.